01. As discussões sobre liturgia e o princípio regulador de culto

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Ao lidar com a questão da liturgia defrontamo-nos com um aparente dilema. Se, por um lado, o planejamento e execução da liturgia é uma função privativa do pastor da igreja,[1] por outro, é como se cada ministro assumisse um ponto de vista diferente dos demais. Tal situação abre espaço, primeiramente, para rotulagens. Pastores mais conservadores julgam seus colegas que adicionam ao culto práticas consideradas “pentecostais” ou “neopentecostais”, enquanto pastores mais abertos a métodos contemporâneos dizem dos conservadores que são “mortos”, “formalistas”, “cerimonialistas” e “destituídos de vida”. Em segundo lugar, padrões de liturgia geram discordância nos debates conciliares. Nestes o nível das discussões é normalmente superficial, focado no que é externo, e.g., se podemos ou não “bater palmas”. Daí são produzidos e aprovados documentos “pró” ou “anti-palmas”, dependendo da tendência do concílio. Futuramente, mudando a tendência, muda o documento, ad infinitum.

A questão que surge é: “existe uma base unificadora para o culto, ou, de fato, cada pastor tem a plena liberdade de implementar o que quiser?” O autor deste estudo entende que sim, há uma base unificadora para o culto e que a raiz de todas as dificuldades quanto ao assunto reside no desconhecimento — ou, conhecendo-a, sua desconsideração — desta base.

1.1. A base para o culto cristão

O alicerce para o culto é teológico. Se, quanto ao culto, pudermos arbitrar e implementar as mudanças que acharmos melhor, munidos de textos-prova retirados do seu contexto, não há orientação litúrgica objetiva. Se, por outro lado, houver um princípio teológico irredutível que sustenta e formulação e prática litúrgica, cabe a nós, primeiramente, compreendê-lo e, em seguida, obedecê-lo. Se a base para o culto for teológica, cultuar seria, a partir desta percepção, uma aplicação da Teologia. Isso seria consistente com afirmação de que toda a vida da igreja deveria ser uma aplicação da verdade de Deus, ou seja, do evangelho, especialmente o culto.

1.1.1. O culto no Antigo e Novo Testamentos

Uma primeira necessidade, quando pensamos na base do culto cristão, é verificar os escritos do Antigo e Novo Testamentos.[2] Uma base teológica para a liturgia pressupõe, antes de tudo, fidelidade à Bíblia. Nesses termos, será fornecida, à partir do segundo estudo, um breve resumo dos ensinos da Escritura sobre adoração.

1.1.2. O princípio regulador de culto

A análise dos dados bíblicos sobre culto é uma exigência daquilo que os pais reformados denominaram Princípio Regulador de Culto.[3] O PRC é o que, de fato, diferencia um culto reformado dos cultos de quaisquer outras igrejas evangélicas. Ainda que estabelecido pelos reformadores do século 16, encontramos sua formalização nos Símbolos de Fé, especialmente na Confissão de Fé de Westminster:[4]

A luz da natureza mostra que há um Deus, que tem domínio e soberania sobre tudo, que é bom e faz bem a todos, e que, portanto, deve ser temido, amado, louvado, invocado, crido e servido de todo o coração, de toda a alma e de toda a força; mas o modo aceitável de adorar o verdadeiro Deus é instituído por ele mesmo, e é tão limitado pela sua vontade revelada, que não deve ser adorado segundo as imaginações e invenções dos homens, ou sugestões de Satanás, nem sob qualquer representação visível, ou de qualquer outro modo não prescrito nas Santas Escrituras.
Referências bíblicas: Rm 1.20; Sl 119.68; Sl 31.23; At. 17.24; Dt 12.32; Mt 15.9; Mt 4.9, 10; Jo 4.23,24; Êx 20.4-6.[5]

Os teólogos de Westminster responderam tanto ao catolicismo romano quanto à efervescência dos entusiastas. Dois foram os problemas por eles resolvidos:

  1. A perversão da eucaristia bíblica, abordada nos capítulos VI a XVIII da CFW.
  2. O culto centrado na experiência fenomenológica e no apelo estético, abordado no capítulo XXI.

O catolicismo medieval motivava a experiência fenomenológica, a crença popular em sinais e maravilhas.[6] Ademais valorizava em alto grau a estética na arquitetura, escultura, pintura e, finalmente, na música. No lugar de adoração tudo era construído e decorado de modo a produzir êxtase visual, um sentimento de pequenez diante da transcendência divina; o indivíduo não apenas percebia racionalmente, mas sentia que, saindo de um mundo muito comum, adentrava em um espaço sagrado, um lugar fantástico. A música atingiu uma sofisticação sem precedentes. Ao ouvi-la o cultuante era elevado, literalmente conduzido a uma experiência “espiritual” ainda que não a compreendesse, uma vez que as letras eram cantadas em Latim.[7]

Lutero, Calvino, Zwínglio, Bullinger, Bucer, Farel, Calvino e outros perceberam no culto católico — e também nas bem-intencionadas iniciativas anabatistas — a presença de formas e práticas que afrontavam ao evangelho. A geração seguinte, os teólogos que escreveram a CFW, prosseguiu na mesma direção dos primeiros reformadores.[8]

Atualmente nem todos os evangélicos assumem a proposição reformada. Retornando ao texto da CFW, citado acima, há unidade de pensamento e prática até a palavra “força”. A divisão ocorre a partir da expressão “o modo aceitável”. Dito de outro modo, evangélicos em geral entendem que pode ser incluído no culto tudo aquilo que não for proibido pelas Escrituras. Os cristãos evangélicos que assumem os postulados reformados, por sua vez, incluem na liturgia somente aquilo que for biblicamente prescrito. Para estes:

[…] a criatividade humana deve estar submissa à instituição divina, pois o Deus Trino, que é adorado, estabelece os princípios e as normas para este ato; portanto, o que determina a forma de culto não pode ser um critério puramente estético ou sentimental, mas sim espiritual, teológico e racional, todos subordinados à revelação.[9]

A prática do culto — sua liturgia e efetiva tributação a Deus — restringe o homem. Como afirmou Hodge, “não temos, em nenhuma circunstância, qualquer direito, com base nos gostos, na moda ou conveniência, de ir além da clara autoridade da Escritura”.[10] Os cristãos provenientes da Reforma afirmam, sem embargo, que o culto autêntico é oferecido em liberdade e limita as inclinações mundanas do coração humano, protegendo os adoradores dos erros de Satanás. Assim como nada além da revelação da Escritura é confiável como fonte de conhecimento do evangelho, nada além dela deve nos instruir quanto ao culto. A liturgia é colaboradora da soteriologia na ratificação dos postulados Sola Scriptura e Soli Deo Gloria.

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Notas

1. Constituição Interna da Igreja Presbiteriana do Brasil, doravante denominada CI/IPB, Capítulo IV, Seção 1ª, Art. 31, alínea “d”. In: CAMPOS, Silas. (Org.) Manual Presbiteriano Com Jurisprudência. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 23.

2. Doravante denominados AT e NT.

3. Doravante denominado PRC.

4. Doravante denominada CFW.

5. ASSEMBLÉIA DE WESTMINSTER. Símbolos de Fé, Contendo a Confissão de Fé, Catecismo Maior/Breve. São Paulo: Cultura Cristã, 2005. CFW, XXI.i, p. 75. Grifos nossos.

6. São recorrentes os apontamentos da veneração de relíquias — cujos “poderes milagrosos” eram atestados por diversos fiéis — e das “graças” recebidas mediante dedicação a Maria ou outros santos. Ao escrever ao monarca da França, Francisco I, João Calvino afirma que um dos destaques da fé reformada era seu lastro único no registro bíblico dos milagres de Cristo e dos apóstolos: “Agem de modo ímprobo ao requerer de nós os milagres; na realidade, não urdimos algum Evangelho novo, mas mantemos exatamente o mesmo: para a confirmação de sua verdade, servem todos os milagres que alguma vez tanto o Cristo quanto os apóstolos tenham dado a luz”. Cf. CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã. Edição Integral de 1559. São Paulo: Editora UNESP, 2008, Carta de João Calvino a Francisco I, p. 19. Além dos católicos, os entusiastas, notadamente os anabatistas, eram abertos à centralização dos milagres, especialmente novas revelações.

7. Acerca da música — especialmente do Coral Gregoriano — como “impressão”, cf. MÓDOLO, Parcival. “Impressão” ou “Expressão”: O Papel da Música Na Missa Romana Medieval e no Culto Reformado. In: Teologia Para Vida, v. I, n. 1 (jan./jun. 2005), p. 109-128.

8. Para uma análise pertinente da importância do culto para os reformadores, cf. ANGLADA, Paulo. O Princípio Regulador do Culto. São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, [19–?], p. 1-9.

9. COSTA, Hermisten Maia Pereira da. O Culto Cristão Na Perspectiva de João Calvino. In: Fides Reformata, v. VIII, n. 2 (2003), p. 78.

10. HODGE, Archibald A. Confissão de Fé Comentada Por A. A. Hodge. São Paulo: Os Puritanos, 1999, p. 369, apud COSTA, op. cit., p. 79.

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