Dando prosseguimento à reflexão iniciada em O santo alienígena, destaca-se a figura de Jesus de Nazaré, o judeu. Ao pensamos nele em termos de espiritualidade, defrontamo-nos com o “homem perfeito” — o exemplo de vida que devemos imitar para que agrademos ao Pai.[1]
Uma das mais fantásticas revelações da Bíblia sobre Cristo é que ele era um judeu sociável. Ao invés de isolar-se, ele aproximava-se e participava ativamente dos eventos culturais do seu povo. O Evangelho de João enfatiza a sua presença em uma festa de casamento, nas celebrações dos tabernáculos e nas cerimônias pascais (Jo 2.1-12, 13; 5.1; 7.37). Além disso, no Evangelho de Mateus, nós o encontramos participando de refeições festivas, junto com pessoas não-religiosas (Mt 9.10).
Essa postura fez com que os “santos alienígenas” daquele tempo, os fariseus, se encandalizassem. Para eles era inconcebível ser santo e, ao mesmo, tempo conversar, comer e tomar vinho com pessoas “imperfeitas” (Mt 9.11). Eles achavam um absurdo alguém afirmar-se comprometido com Deus ao mesmo tempo em que era tão integrado à vida social.
O Senhor, apesar de ser perfeitamente santo e equilibrado em todas as coisas, devido ao seu jeito “humano” de ser, foi maldosa e injustamente acusado por seus opositores de ser um “beberrão e glutão” (Mt 11.19).
O contato de Cristo com a cultura está sendo averiguado por alguns estudiosos. Os papirólogos Thiede e D’Ancona argumentam que a cidade de Jesus, Nazaré, ficava distante 6 km de Séforis, reconhecida pelo arqueólogo e monge beneditino Bargil Pixner como “a mais importantes cidade depois de Jerusalém, sob uma perspectiva cristã”.[2] Tal cidade estava sendo reconstruída como capital da Galiléia durante a juventude de Jesus. Provavelmente Jesus e seu pai, ambos construtores de profissão, participaram ativamente dos trabalhos em Séforis.[3] Decorre dessas cogitações que Jesus pertencia a uma família humilde, mas tanto ele como o pai eram profissionais técnicos, e obtinham através da profissão os recursos necessários para manter condições suficientes de subsistência, possibilitando o acesso a um nível considerável de sociabilidade e cultura.
Acerca disso encontramos uma pista na própria linguagem de Jesus. Ele falava de modo comum o aramaico e, como judeu, dominava o hebraico, língua na qual foram redigidas as Escrituras. Além disso ele utilizava o grego. Isso se evidencia no relato de Marcos 7.26, que traz, no original, He de gyne en Hellenís, que significa literalmente “e a mulher falava em grego” (traduzido em nossas Bíblias como “ela era grega”, um pleonasmo sem sentido, aplicado a uma mulher explicitamente descrita como sírio-fenícia). O objetivo de Marcos é mostrar que o Senhor conversou com aquela mulher em grego. Jesus também utilizou a tradução grega das Escrituras, a Setenta ou Septuaginta (LXX) e manteve contato com a cultura helênica que prevalecia em sua própria região. Considerando o seu fácil acesso a Séforis, que possuía um teatro para cinco mil pessoas, e que um dos seus ditos prediletos era uma expressão técnica do teatro grego — hypókrisis (hipocrisia) e hypokritai! (hipócritas ou atores — p. 181 e 182),[4] não é absurdo considerarmos que ele mesmo frequentou o teatro (!). Jesus não era rico e, em todo o seu ministério, esteve entre os pobres e simples. No entanto, ele era um homem de seu tempo, inserido em sua cultura, capaz de dialogar em vários ambientes e a partir de diversos paradigmas, em pelo menos três línguas diferentes.
O que isso nos diz? Pelo menos até agora, podemos entender que ser espiritual não significa fugir da cultura. No nosso caso, podemos ser santos e perfeitamente integrados à cultura brasileira (apesar de termos de nos resguardar de suas nuances pecaminosas).
Adiante falarei sobre o humor, as amizades, os hábitos de alimentação e contemplação estética de Jesus. Fique firme.
Notas
1. Digo isso assumindo a cristologia ortodoxa, ou seja, Jesus é vero homem e vero Deus. Discordo das ideias tanto de Kant quanto de Schleiermacher e dos neoprotestantes posteriores, que terminam encontrando em Cristo apenas um padrão virtuoso ao qual podemos nos ajustar com base em nossos próprias recursos e qualidades. Ao afirmar que Jesus é um exemplo refiro-me a Romanos 8.29: Deus graciosamente nos elegeu para que sejamos conformados à “imagem de seu Filho”. Esse é o postulado da Escritura sobre santidade.
2. THIEDE, Carsten Peter; D’ANCONA, Matthew. Testemunha ocular de Jesus: Novas provas em manuscrito sobre a origem dos Evangelhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 181.
3. Ibid. loc. cit.
4. Ibid. p. 181-182.
Deixe um comentário
Você precisa fazer o login para publicar um comentário.