No post anterior eu falei da necessidade de obedecermos ao Senhor naquilo que ele prescreve sobre namoros mistos, sem esperar novas revelações que contrariem o ensino claro da Escritura. Paradoxalmente, destaquei a necessidade de tratarmos os crentes que assumem namoros mistos com amor e respeito, além de acolhermos os namorados não cristãos suplicando a Deus que, no convívio da igreja, estes conheçam o evangelho.
Deixei uma questão em aberto. Se eu entendo que o namoro com alguém de fora da igreja contraria a instrução das Escrituras, por que eu realizo casamentos mistos? Não seria isso uma contradição – uma estranha mistura de legalismo com frouxidão de costumes?
O casamento nos contextos da graça comum e especial
Uma correta compreensão do ensino da Bíblia sobre o casamento exige a distinção entre graça comum e graça especial. A graça comum é “a influência do Espírito, que em maior ou menor medida é concedida a todos os não-regenerados”. A graça especial é a influência do Espírito aplicando salvação nos eleitos.
O casamento foi estabelecido por Deus como um benefício da criação (portanto, da graça comum) enriquecido pela redenção.
O casamento como dádiva da criação
O casamento é vital para o estabelecimento das famílias (Gn 2.18-25). A Confissão de Fé de Westminster (24.2) afirma que o matrimônio foi ordenado para “o auxílio mútuo de marido e esposa, para a propagação da raça humana por uma sucessão legítima”.
Notemos que o casamento foi estabelecido dentro da moldura do pacto da criação, antes da queda. Trata-se, portanto de uma instituição divina para todo o gênero humano. Por esta razão os teólogos pactuais insistem em dizer que o casamento não é restrito aos membros da igreja. No caso dos não crentes, ele é ministrado no contexto da graça comum ou, dito de outro modo, o matrimônio não é um sacramento.
O casamento enriquecido pela redenção
Ao mesmo tempo, reconheçamos que o casamento é reconfigurado pelo pacto da graça. Desde os tempos primordiais, uma evidência da salvação encontra-se no fato da família invocar ao Senhor (Gn 4.25-26).
A promessa a Abraão alcança não apenas aquele patriarca, mas também os seus descendentes e sua aplicação ou desfrute exige um lar consagrado a Deus (Gn 17.7; 18.19). Os crentes são redimidos e relacionam-se com Deus nos termos da aliança graciosa e, em tal contexto, a família é o núcleo de manutenção e fortalecimento da fé (Êx 12.25-27; Dt 6.4-9; Js 24.15; Sl 127.1–128.6; At 2.39; 16.30-34).
Segundo o Novo Testamento, o casamento aponta para a união de Cristo com a igreja, ou seja, uma perspectiva de maridos segundo Cristo (exercendo, ainda que imperfeitamente, o múnus de sacerdote, profeta e rei) e esposas amadas e auxiliadoras (Ef 5.31-33). Uma relação em tais moldes exige a unidade espiritual do casal; é impossível de consolidar-se num casamento misto.
Os filhos de um casamento misto são santos
Apesar da sublimidade do matrimônio cristão, os crentes casados com não crentes são orientados a permanecer casados; de fato o cônjuge incrédulo é “santificado” no convívio com o crente e os filhos da união entre um crente e um não crente são santos (1Co 7.10-14). Tal ensino torna impossível tratar inflexivelmente as uniões mistas. Cada caso deve ser analisado balanceando-se o amor gracioso e o temor reverente a Deus, tornando-se a igreja sinal tanto da santidade, traduzida em julgamento, quanto da graça, traduzida em trato gentil.
As decisões da igreja sobre os casamentos mistos
O Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil (SC/IPB) tem afirmado o ensino bíblico no decorrer dos anos. A resolução 102, de 1958, contém cinco afirmações:
- A Confissão de Fé e nossa Carta Magna (Constituição Interna da IPB ou CI/IPB) silenciam se deve ou não o pastor impetrar a bênção em pessoas não crentes.
- O casamento não é sacramento.
- A bênção nupcial sobre os nubentes é um meio de o celebrante trazer o casal, sua família e os convidados ao evangelho.
- A bênção é uma oportunidade de o pastor imprimir na vida do casal, princípios éticos e cristãos.
- Resolve-se que “o pastor pode impetrar a bênção matrimonial a nubentes evangélicos e não evangélicos, desde que eles creiam em Deus, na eterna Providência e se comprometam a obedecer a Deus e cumprir os compromissos assumidos perante o oficiante”.
Na resolução 57, de 1976, afirma-se que “de acordo com a CI/IPB, em seus Princípios de Liturgia, capítulo 8, Artigos 18, 19 e 20, a cerimônia da impetração da benção matrimonial, independe do fato de um ou ambos os nubentes sejam filiados à Igreja Presbiteriana do Brasil”. A resolução 110, de 1987, encerra o assunto definindo o seguinte:
No caso do pedido da bênção de Deus, ou entendemos que Deus limitará sua bênção ao casamento entre crentes, ou pedi-la-emos também para casais “mistos”, ou não crentes, desde que tenhamos boas razões para crer que os noivos desejam e buscam a bênção de Deus. Ora, Deus não criou o casamento para os membros da igreja, mas para o gênero humano, e conferiu bênçãos especiais ao matrimônio. A posição diversa é a católica romana, que considera o casamento sacramento reservado aos fiéis, e o faz preceder da confissão e acompanhar da eucaristia, também reservada aos fiéis; e do nubente acatólico exige certidão de batismo em igreja cristã, mesmo que não católica.
Ponto final. A partir daí, o SC/IPB tem desconsiderado novas consultas de concílios inferiores, encaminhando-os ao acatamento das resoluções acima citadas (cf. resolução 131, de 1994).
A expressão “não crente”, nas decisões do SC/IPB, equivale a uma pessoa que não professa a fé evangélica, mas demonstra temor a Deus. Os nubentes, sejam eles professos ou não em igreja evangélica, precisam crer “em Deus” e “na eterna Providência”, além de demonstrar que levam o casamento a sério.
Isso quer dizer que um ministro cristão não pode celebrar casamentos nos seguintes casos:
- De pessoas que não compreendem a seriedade do compromisso bíblico da aliança matrimonial. Isso precisa ser reafirmado considerando a inclinação cultural de realizar-se cerimônias religiosas pro forma, simplesmente para “salvar as aparências”.
- De ateus, aqueles que não creem na existência de Deus.
- De deístas, os que não creem que Deus intervém na história e sustenta tudo por sua Providência.
- De orientalistas, que não creem que Deus seja transcendente (separado de sua criação) e pessoal (os orientalistas consideram a divindade como uma energia).
- De agnósticos, os que consideram que, caso Deus exista, ele não pode ser conhecido.
Todas as concepções listadas acima contrariam a ideia bíblica de um Deus que se dá a conhecer pactualmente.
Por outro lado, o pastor pode – e, em minha mui falha opinião, devem, quando solicitados – rogar a bênção de Deus sobre as núpcias de pessoas de fora da igreja, desde que verifique-se o atendimento aos requisitos definidos na quinta afirmação da resolução 102, de 1958, citada acima. No meu caso, oito encontros prévios são marcados com os noivos, exatamente com o objetivo de ministrar-lhes orientações bíblicas sobre fé e família.
Finalmente, a IPB respeita a consciência de cada pastor. Eis outra afirmação da resolução 110, de 1987: “Por outro lado, respeitem-se os escrúpulos de consciência de pastores, conselhos e congregações que consideram inaceitável a impetração da bênção sobre casais mistos ou sobre não-evangélicos”.
Em suma, a IPB dá liberdade aos pastores para efetuarem cultos matrimoniais de não crentes – ou não, se isso ferir os escrúpulos de tais ministros.
As oportunidades [e necessidade] de casamentos mistos
Se entendemos que a Bíblia desestimula as uniões mistas, por que celebrar tais casamentos? Não seria isso uma contradição, incoerência ético-doutrinária ou estímulo para os namoros e casamentos entre crentes e não crentes? Forneço três respostas:
- A IPB, de maneira bíblica e, portanto, sóbria, entende seus pastores não apenas como ministros da aliança da redenção (servindo aos de dentro da igreja), mas também da aliança da criação (agentes que atualizam e confirmam o pacto criacional, que define bênçãos para toda a humanidade). Sendo assim, os pastores da IPB não podem ser impedidos de suplicar a misericórdia divina sobre os casamentos de não crentes.
- Realizo tais casamentos como oportunidade de evangelização e intercessão por aqueles que desejam receber a bênção de Deus.
- Realizo casamentos mistos reparadores, quando a união é assumida como forma de reparação de pecado sexual, principalmente em casos em que ocorra gravidez, entendendo que o casamento provê uma estrutura legal que protege os direitos da criança.
Isso não é feito de forma intempestiva ou leviana. Como ministro de todo o conselho de Deus, instruo os crentes (que insistem em assumir um relacionamento misto) sobre as orientações bíblicas quanto ao casamento; cito exemplos, tanto da Escritura quanto da história recente, de consequências negativas decorrentes de tais uniões. Eu exorto (exijo obediência às Escrituras) e oro. Mas quem é pai sabe muito bem que, pelo menos nos termos da cultura ocidental, com relação ao casamento, a decisão final cabe aos filhos. São eles que assumirão os ônus ou os bons resultados de suas opções afetivas. Como pastor e pai espiritual, não posso esmagar consciências, maltratar pessoas ou forçá-las a aceitar a Bíblia. Deus não faz isso; e se ele não faz, muito menos eu. No dia do juízo todos prestaremos contas a ele – e somente ali é que conheceremos todas as coisas como verdadeiramente são. Neste lado da existência, somos instados a nos relacionarmos com base no amor incondicional, o que implica em acolhermos uns aos outros, ainda que repudiando e lamentando as más opções (1Co 13.4-7, 12; cf. Rm 15.7). Nos termos do evangelho só Deus é Senhor da consciência e ainda que a igreja detenha a potestas jurisdictionis (poder de jurisdição, administração ou justiça), tal poder não é aplicado por força, nem por constrangimentos externos, mas decorre da vivificação, pelo Espírito Santo, da Palavra no coração do crente.
Ora, se o casamento é graça comum e eu não posso negá-lo a alguém de fora da igreja, como negá-lo a um filho da fé, que deseja a bênção de Deus sobre sua união com um não crente? Seria eu gracioso para com os não evangélicos e legalista para com as ovelhas de Cristo? O crente que assume um relacionamento misto não carece mais da graça e misericórdia divinas do que aquele que assume um relacionamento “certinho”, estruturado, onde tudo parece colaborar para uma união estável? O que é graça? O que é misericórdia? Bênçãos para os “perfeitos” ou favor aos não merecedores (Lc 15.11-32)?
Conclusão: o casamento misto é desobediência a Deus?
Chegamos então ao último entrave: o casamento misto é uma desobediência? Respondo com outra pergunta: Deus pode operar bênçãos a partir de casamentos mistos? A resposta pode ser encontrada nos relatos bíblicos. Por um lado, Esdras e Neemias agiram duramente para com aqueles que casaram-se com mulheres estrangeiras (Ed 9.1–10.44; Nm 13.23-29). Por outro lado, Deus fez de Rute, moabita estranha ao pacto, uma bênção na vida de Noemi, sua sogra israelita. E como vimos alhures, os filhos, mesmo provenientes de uniões mistas, são “herança” e “bênção” do SENHOR (Sl 127.3-5).
O que a Bíblia revela é que a história é multifacetada, palco onde Deus desvenda o mistério de seu decreto eterno. Por meio deste decreto Deus torna bênçãos figuras tais como Ciro, o rei pagão da Pérsia, ou Raabe, a prostituta, pasmem os moralistas, de quem virá o Messias (Is 45.1-7; cf. Js 2.1-21; 6.22-25; Mt 1.5).
Quando pensamos em casamentos mistos surge o questionamento sobre “o que o cônjuge não crente representará para a família cristã e para Deus”. Isso só o Senhor sabe; eu não sei e nem toda a igreja sabe. O fato é que nenhum cristão é autorizado a amaldiçoar qualquer união (Rm 12.14).
Por último, afirmo que sou ministro do evangelho da graça. A graça só existe, só se torna necessária, porque existe a imperfeição. A partir do momento em que eu assumo que não caso aquele que errou, eu deixo de ser ministro da graça e me torno um legalista que aplica inflexivelmente a chibata da lei nas costas daqueles que erraram. Esta postura de inflexibilidade, de comunidade “santarrona” não cabe no modelo da igreja fornecido pelo Novo Testamento. Para começar, sua prática consistiria na disciplina imediata de mais de metade de toda a igreja.
Vejamos alguns exemplos. Qual é o pecado maior, casar-se com um não crente ou deixar de consagrar dízimos e ofertas? Deixar de fazer discípulos e testemunhar é um pecado menor do que assumir um relacionamento misto? Desrespeitar o Dia do Senhor é pecado mais ou menos grave do que assumir um relacionamento misto? Isso sem falar na frequência às reuniões de orações ou no auxílio aos necessitados. Ora, paremos por aqui, entendendo que vivemos pela graça e não por méritos. Estendemos esta graça aos não evangélicos que entram em contato conosco e em toda consideração dos pecados cometidos pelos irmãos.
Por isso realizo casamentos mistos. Reconhecendo que, mesmo que não sejam o ideal, eu, como ministro de Deus, preciso manter viva a comunhão da parte crente com a igreja; preciso usar a oportunidade para orientar o casal biblicamente; preciso manter aberta a porta para as visitas e ministrações pastorais; preciso orar, chorar e sofrer “dores de parto” até ver Cristo formado em cada família da igreja. Acima de tudo, preciso olhar para mim mesmo e clamar por misericórdia, entendendo que mesmo meu casamento; matrimônio de pastor e de crentes, ainda não traduz com perfeição o ideal de Deus. Ainda preciso caminhar muito para amar mais e melhor minha esposa e filhas, assim como todos os meus parentes.
Com muito respeito aos colegas e irmãos que pensam diferente, afirmo que a graça é a chave de tudo. Graça é a base da salvação, a base da igreja. Graça é a base do ministério. Graça é a base da ética com relação ao casamento.
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