Identifico-me com Ricardo Melo, no artigo “Império da mentira” (Folha, 19/10/2010, A2), quando destaca a falta de sinceridade, no que diz respeito à religião, das campanhas de Dilma Rousseff e José Serra. Como teólogo calvinista, entendo que não é necessário que a Presidência da República seja ocupada por um cristão. Deus governa sobre tudo e não necessita de defensores de sua honra para cumprir sua vontade. Nós, eleitores, ganharíamos muito mais se os atuais candidatos apresentassem propostas inteligentes e honestas para a boa gerência de nossa nação.
Discordo, porém, da expressão “dogmas obscurantistas”, utilizado por Melo. Os dois termos são imprecisos, primeiro porque o debate sobre o aborto, teologicamente, não se encaixa na dogmática. Uma parcela significativa do protestantismo identifica como dogma apenas os construtos sobre o ser de Deus estabelecidos nos primeiros séculos do cristianismo, quando os temas da bioética sequer eram considerados. Em segundo lugar, não é honesto, intelectualmente falando, taxar de obscurantista o discurso das igrejas (com “i” minúsculo, pois no Brasil não há a palavra de apenas uma igreja) sobre o aborto. Apesar da tentativa de compartimentalizar o ponto como item unicamente de saúde pública, ambas as proposições (apoiar o aborto ou combatê-lo) são também filosóficas e religiosas. O problema atual é a discussão rasa e pragmática da questão, a utilização do tema para manipulação de consciências e obtenção de votos. A construção de uma sociedade de fato democrática exige que sejam ouvidos também os religiosos, cidadãos que pagam impostos e têm tanto o dever cívico de ouvir quanto o direito de ser ouvidos.
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