Não peço que os tires do mundo, e sim que os guardes do mal.
Eles não são do mundo, como também eu não sou (Jesus Cristo, João 17.15-16).
Carta à Igreja de Pérgamo (Ap 2.12-17)
[12] Ao anjo da igreja em Pérgamo escreve: Estas coisas diz aquele que tem a espada afiada de dois gumes: [13] Conheço o lugar em que habitas, onde está o trono de Satanás, e que conservas o meu nome e não negaste a minha fé, ainda nos dias de Antipas, minha testemunha, meu fiel, o qual foi morto entre vós, onde Satanás habita.
[14] Tenho, todavia, contra ti algumas coisas, pois que tens aí os que sustentam a doutrina de Balaão, o qual ensinava a Balaque a armar ciladas diante dos filhos de Israel para comerem coisas sacrificadas aos ídolos e praticarem a prostituição. [15] Outrossim, também tu tens os que da mesma forma sustentam a doutrina dos nicolaítas. [16] Portanto, arrepende-te; e, se não, venho a ti sem demora e contra eles pelejarei com a espada da minha boca.
[17] Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas: Ao vencedor, dar-lhe-ei do maná escondido, bem como lhe darei uma pedrinha branca, e sobre essa pedrinha escrito um nome novo, o qual ninguém conhece, exceto aquele que o recebe.
Pérgamo era uma cidade culta e de grande importância política por ser a capital do Império na Ásia Menor. Era o centro do culto ao Imperador no Oriente e ostentava “templos dedicados a Zeus, Atena, Dionísio e Esculápio” (ASHCRAFT, 1987, p. 313), este último, considerado o deus da medicina e da cura (SCHÖKEL, 2002, p. 2947; HENDRIKSEN, 2001, p. 96. Esculápio é também denominado “Asclépio”; cf. KISTEMAKER, 2004, p. 174). Foi dali que surgiu o pergaminho como material de escrita, e a cidade possuía “a segunda maior biblioteca do mundo antigo, que só perdia em importância para a que existia na cidade de Alexandria do Egito” (PROENÇA, 2004, p. 47). Em suma, Pérgamo era um grande exemplo de ostentação da cultura e civilização modernas.
Aquela igreja conservava o nome de Cristo, pois não havia renegado a fé (v. 13). No entanto o Senhor dirige-se a ela em termos de juízo fulminante. Ele é aquele que tem “a espada afiada de dois gumes” (2.12). Existiam ali dois problemas que exigiam solução imediata:
- A cosmovisão dos cristãos de Pérgamo era fragmentada.
- Havia, por parte de alguns, tolerância a uma teologia sincretista que resultava em idolatria e práticas imorais.
Cosmovisão é o modo como olhamos o mundo (PEARCEY, 2006, p. 26; SIRE, 2004, p. 21) e que dizem respeito às “questões mais importantes da vida” (MORELAND, CRAIG, 2005, p. 29). Essa forma de interpretar a realidade define nossa interação com a cultura que, por sua vez, é o produto de nossa relação com a sociedade (FRIEDMAN, 2007, p. 272-300; HIEBERT, 1999, p. 30-35; LARAIA, 1996, p. 25; KWAST, 2009, p. 385-388; SMITH, 2003, p. 18 e YAMAUCHI, 2007, p. 153-155).
Os irmãos precisavam compreender que em Pérgamo se encontrava “o trono de Satanás” (2.13). Tal designação tem ligação com as características da cidade citadas acima: os cultos ao Imperador e às divindades gregas e o ecletismo decorrente de pretensa sofisticação intelectual (BÍBLIA TRADUÇÃO ECUMÊNICA, p. 2428; ASHCRAFT, op. cit., p. 314; Bíblia Vida Nova, 1996, p. 292). Sendo os pergamenses ecléticos, pessoas de horizontes largos, dispostas a aceitar novas ideias e a conviver dialeticamente com vários pontos de vista divergentes, é possível que alguns membros da igreja entendessem que o cristianismo não poderia ser uma religião estreita. Precisava ser aberto, disposto ao diálogo e à constante anexação de novos conceitos, perfeitamente amalgamado à cultura.
Lida por esta perspectiva, a carta pode ser entendida como um sinal efetivo “do conflito entre a Revelação e a Civilização” (ELLUL, op. cit., p. 145). Ao nomear de maneira tão brutal aquela sociedade, o Senhor estava declarando que “não há síntese, conciliação possível, entre a Revelação e as grandes obras da civilização humana” (ibid., loc cit.). Destarte, temos aqui o chamado para que enxerguemos que, por detrás do conhecimento e realizações da civilização distanciada de Deus, encontra-se uma versão atualizada de Babel: “Tornemos célebre o nosso nome” (Gn 11.4). Resumindo, a cultura de Pérgamo era furtivamente submissa ao inimigo.
Isso transparece ainda mais quando lemos sobre “Antipas”, que foi morto “onde Satanás habita” (2.13). Apesar de não termos informações adicionais sobre Antipas (LADD, 1984, p. 37; KISTEMAKER, op. cit., p. 175), o mesmo é chamado de “minha testemunha”, sendo que a palavra grega é a mesma de Apocalipse 1.5 (mártir). É possível que tal homem tenha comprovado sua fidelidade ao colocar-se contrário à cultura pecaminosa de Pérgamo.
O segundo problema pontuado por Cristo é descrito a seguir: alguns membros da igreja sustentavam a “doutrina de Balaão” e outros defendiam a “doutrina dos nicolaítas” (2.14-15). Acerca do ensino de Balaão e dos nicolaítas eu comentarei mais adiante na análise da carta a Tiatira. Por ora basta que nos apeguemos à palavra “doutrina”, encontrada duas vezes nos versos citados. Sabe-se, da “doutrina de Balaão”, que seus adeptos se tornavam idólatras e imorais (2.14). Ainda que Hendriksen (op. cit., p. 98) sugira que o problema básico daqueles crentes era um relaxamento da disciplina, parece-me que tal indisciplina decorria de um problema doutrinário, ou seja, a carta demonstra que o Senhor se importa com “uma doutrina exata que permita uma prática exata. A formulação teológica é essencial” (ELLUL, op. cit., p. 146).
A palavra para a igreja em Pérgamo é dura. Aqueles que seguirem as falsas doutrinas e, consequentemente, incorrerem em frouxidão cultual e moral, enfrentarão a espada da boca de Cristo (2.16). Essa espada é para “ferir as nações” (19.15) e está ligada ao derramamento do furor da ira de Deus sobre os não salvos. Deus vincula inseparavelmente a salvação à verdade. “Quem salva é Cristo e não a doutrina” dizem-nos os evangelistas atuais. Acontece que Cristo é a verdade, o oposto da mentira. Fora da doutrina verdadeira não há salvação (Jo 8.31, 32, 34, 36, 44; 1Co 15.1-4 et seq.; Gl 1.7-9; 2Tm 4.1-5; 2Jo 7-11).
O vencedor receberá o “maná escondido” e uma “pedrinha branca com um nome novo, o qual ninguém conhece” (2.17). Afirma-se que o maná tipifica a vida espiritual e aponta para “a expectativa judaica de que desceria novamente do céu o maná quando se manifestasse o Messias” (BEASLEY-MURRAY, 1985, p. 1455). Outro autor (ASHCRAFT, 1987, p. 315) argumenta que o maná é “a comida do céu, em oposição à comida sacrificada aos ídolos”; uma lenda judaica explicaria o significado do maná:
Quando o templo caiu, em 586 a.C., um anjo ou Jeremias havia escondido a arca com o maná, que iria ser preservado até o reino messiânico (2Macab. 2.4 e s; 2Bar 6.5-10). No pensamento apocalíptico judaico, este maná viria à terra por ocasião da vitória de Deus (2Bar 29.8 — ibid., loc. cit.).
Todas essas interpretações são fascinantes, mas a figura do maná faz-nos lembrar, primeiramente, da experiência do povo de Deus durante a peregrinação até a Terra Prometida. Os israelitas foram sustentados com comida celestial, recolhida todos os dias pela manhã (Êx 16.4-7, 31, 35). E se o maná evoca a ideia de provisão eterna e espiritual, o Senhor Jesus afirmou ser ele mesmo este maná (Jo 6.32-35). Tal analogia entrelaça-se com outros textos da Escritura nos quais o verdadeiro alimento para a alma é a Palavra de Deus (Dt 8.3). O conteúdo bíblico autoriza-nos a afirmar que Cristo na Palavra de Deus é o alimento que sustenta a nossa fé e prática. Uma vez que o tema da epístola é essencialmente a contaminação do conteúdo doutrinário da igreja, Cristo une aqui Palavra e suprimento místico. Destarte, concordo com Ellul (op. cit., p. 146), para quem o maná “é o bom alimento, a boa doutrina”, e a promessa de Cristo nesta carta é a da “autenticidade doutrinal”.
Quanto à “pedrinha branca” com um “nome novo, o qual ninguém conhece, exceto aquele que o recebe”, entendo que a mesma refira-se à vitória e absolvição. Ladd fala que nos julgamentos tais pedras eram concedidas aos réus absolvidos (LADD, op. cit., p. 39. Outras interpretações são sugeridas por HENDRIKSEN, op. cit., p. 98-102; KISTEMAKER, op. cit., p. 180-182. Para Wilcock — 1986, p. 27 —, a figura alude a um “convite a um banquete no céu, que consiste na comunhão com o próprio Cristo”).
Quais as implicações práticas desta carta?
Quanto à cosmovisão, compreendamos que, desde a queda, estabeleceu-se no universo “um reino parasita” (VAN GRONINGEN, 2002, p. 127); a serpente instalou um vírus no sistema cósmico e opera a partir dele, com a finalidade de sublevá-lo, danificá-lo e destruí-lo (ibid., p. 129). Por isso a Bíblia não descreve a sociedade como sendo evolutiva. Ao mesmo tempo que há progresso em diversas áreas, ocorre também um recrudescimento da idolatria, violência, imoralidade e rebeldia contra Deus e as Escrituras. Apesar de todos os avanços tecnológicos, existe ainda nesta realidade o “trono de Satanás”. Para o Apocalipse de João, a sociedade não é amigável nem recuperável por esforço humano; a igreja não poderá salvá-la por sua influência positiva e suas estruturas jamais serão totalmente recuperadas sem a intervenção poderosa de Cristo, em sua segunda vinda.
Isso não é razão, no entanto, para afastamento cultural. Orientados por uma cosmovisão bíblica (PEARCEY, op. cit., p. 49-51), não nos alienamos da criação. Brilhamos, salgamos, fazemos o bem e testemunhamos do amor de Deus. Mergulhamos positiva e construtivamente na vida, buscando materializar hoje as realidades do reino futuro. Clamamos por justiça e a praticamos, atendemos aos aflitos, servimos à causa dos oprimidos e socorremos aos sofredores (Is 1.16-18; 58, 61; Mt 5.13-16; Mc 16.15). Desta feita cumprimos os mandados espiritual, social e cultural. Mas não nos iludimos; caminhamos como “ovelhas no meio de lobos, símplices como as pombas e prudentes como as serpentes” (Mt 10.16). Sabemos que futuramente Deus restaurará o mundo e fará com que os desertos se transformem em fontes de água limpa (Is 51.3). Porém, hoje, “o mundo inteiro jaz no maligno” (1Jo 5.19). Às vezes, confusos e ingênuos, extasiamo-nos diante da magnitude da Civilização, mas Cristo nos repreende: “Vocês não estão tendo a visão correta. Não sobrará pedra sobre pedra destas grandes obras humanas. Eu destruirei tudo” (Mc 13.1-2). Apregoando as ordenanças da criação, ou seja, engajando-se na tarefa de imprimir o nome de Cristo em todas as esferas da existência, compreendemos que o cristianismo contém um chamado à ruptura.
Tal ensino é impopular hoje, quando estamos tão preocupados em “produzir” um cristianismo desmesuradamente integrado à cultura. Como afirma Bowman (1996, p. 18):
Se um pastor busca o aumento de número de membros de sua Igreja como seu alvo principal, ele terá de utilizar algumas das técnicas de promoção que os grandes centros de entretenimento usam, a fim de atrair pessoas […]. As pessoas acorrem para as suas reuniões a fim de serem entretidas pelo humor dos púlpitos e estórias engraçadas. Eles vêm porque esperam ver diversão, apresentações dramáticas, ventríloquos, celebridades, heróis esportistas, personalidades da televisão e as últimas novidades da música “gospel”. […] Eu não encontro esse tipo de “esperteza” no Novo Testamento. As pessoas que acorriam às reuniões da Igreja primitiva, não esperavam outra coisa exceto perseguição. Crer em Cristo, no tempo apostólico, equivalia a assinar sua sentença de morte.
Somos naturalmente inclinados a apagar a linha divisória que Cristo traçou. Temos medo de que considerem a nossa fé reducionista, ridícula e absurda. Acontece que o cristianismo é, em essência, incompreendido para os que se perdem (1Co 1.18, 21-25). Isso não elimina a tarefa apologética nem nosso engajamento no cumprimento dos mandados criacionais, mas destaca a necessidade de assumirmos a tensão entre compromisso com a redenção do mundo e afastamento de sua cosmovisão pecaminosa. Deus exige separação entre o crente e o mundo. Pertencemos ao reinado de Cristo enquanto Pérgamo é o “trono de Satanás”.
Isso tem desdobramentos para a questão da doutrina e santidade prática. Devemos poder dizer como o puritano Richard Rogers: “Sirvo a um Deus preciso” (apud RYKEN, 1992, p. 15), ou seja, nossos postulados teológicos devem ser firmes. Para alguns, a preocupação com a doutrina é considerada perda de tempo e o crente que exige respostas, que entende a Bíblia como um conjunto de ideias coerentes e, portanto, busca abraçar um sistema doutrinário consistente, que não diz “aleluia” e “glória a Deus” quando um pregador fala coisas contrárias à Bíblia, que não chora diante de testemunhos de experiências extrabíblicas, esse crente é impopular, um reducionista, um fundamentalista pedante, uma “cruz” dentro das igrejas. Como dizem alguns, “a unidade é mais preciosa do que a verdade; abandonemos os detalhamentos doutrinários; abracemo-nos e cantemos fraternalmente.” A palavra de Cristo a Pérgamo, por sua vez, lança por terra a ideia comum, de que aquele que se preocupa com doutrina é espiritualmente frio.
Referência Bibliográfica
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BEASLEY-MURRAY, G. R. O novo comentário da Bíblia: Apocalipse. São Paulo: Vida Nova, 1985. v. 2.
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BÍBLIA VIDA NOVA. São Paulo: Vida Nova, 1996.
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ELLUL, Jacques. Apocalipse: Arquitetura em movimento. São Paulo: Paulinas, 1979.
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LADD, George Eldon. Apocalipse: Introdução e comentário. São Paulo: Mundo Cristão e Vida Nova, 1984.
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