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“Eleição. Coisa de presbiterianos!” — é o que ouvimos, quando tentamos compartilhar o assunto com algumas pessoas. Nada mais natural. Afinal de contas, este ensino tem sido questionado desde tempos antigos, e isso com muita razão. Ele é ofensivo; fere nossa confiança própria. Aos homens é completamente ridícula e ameaçadora a ideia de um Deus que seja Deus: livre, soberano, que não deve nada a ninguém, nem tem a obrigação de prestar contas a nós, criaturas limitadas.
A doutrina da eleição é terrível para quem não tem o coração descansado nas promessas do evangelho de Deus. “Será que estou perdendo meu tempo na igreja? E se eu não for eleito?” — é o questionamento daqueles que enxergam Deus como uma pessoa desonesta, que vai lhes “passar a perna”, no dia do juízo final. Também é ridícula aos olhos de quem pensa que pode apontar o dedo para o rosto de Deus e questionar os seus desígnios: “Um Deus que escolhe uns para a salvação e outros para a condenação é injusto!” — como se nós estivéssemos à altura de julgar ao Todo-Poderoso. Outros não aceitam o ensino, afirmando que os crentes na eleição tornam-se alienados, improdutivos e resignados. Nesse ponto, confundem descanso e paz com alienação, santidade com improdutividade e fé com resignação.
Temos ainda a posição mais popular, que insiste em que deixemos essa história de eleição de lado. Não vale a pena falar sobre o assunto. “Deixemos isso com Deus, esqueçamos estas querelas e trabalhemos para o Senhor. O importante é que vivamos a comunhão e preguemos o evangelho de Cristo”. Lindo argumento! Aparentemente espiritual, mas antibíblico.
A questão é a seguinte: Podemos pregar o puro evangelho à parte da doutrina da eleição? Podemos falar do evangelho sem tratar da depravação total, da escolha incondicional, da expiação limitada, da vocação eficaz e da perseverança dos santos? Impossível! Podemos falar da pura graça incondicional de Deus, sem mencionar que “fomos eleitos em Cristo antes da fundação do mundo?” Seria o mesmo que tentar equilibrar uma mesa somente em três pernas. Estaríamos nos firmando numa doutrina capenga, doente e defeituosa.
Não é essa a situação da igreja? Não estaríamos defeituosos em nossas crenças? Onde estão os estudiosos profundos, os “bereanos” de nosso tempo? São poucos. Vemos, pelo contrário, muitos que, folheando superficialmente suas Bíblias, levantam bandeiras contra a eleição, sem ao menos terem despendido tempo para estudá-la profundamente. John Owen, erudito puritano, levou mais de seis anos escrevendo sua obra sobra a eleição, A Morte da Morte na Morte de Cristo (publicado no Brasil sob o título Por Quem Morreu Jesus?), com intenso estudo dos textos bíblicos nas línguas originais, suor e oração. A Assembleia de Westminster tratou do tema da eleição em diversas reuniões, regadas a muita Bíblia e oração (registra-se que algumas orações devocionais duraram mais de duas horas!). E eis-nos aqui: Cristãos “sabichões” do século 21. Sapateamos contra a eleição nos primeiros trinta segundos de apresentação da doutrina. Agimos como meninos que não querem tomar o remédio que nos parece amargo. Berramos e batemos a cabeça contra a parede: “Eu não aceito isso, eu não aceito isso!”, de modo precipitado.
O resultado prático é infantilismo espiritual e superficialidade. Isso porque as doutrinas da graça não são descartáveis. Pelo contrário, devem ser o centro de nossa vida cristã. À parte delas, definhamos, deixamos de crescer e tornamo-nos mongoloides espirituais. Ao meu ver, seria muito reduzido o número de pessoas problemáticas, buscando aconselhamento pastoral, se tão somente entendêssemos e aceitássemos as doutrinas da graça incondicional de Deus com humildade e confiança. Que bênção seria para nós, entendermos melhor e mais profundamente o pacto da graça, do qual a eleição é um dos itens principais!
Sei que alguns acharão minhas palavras radicais, petulantes e intransigentes. Mas não se pode abrir mão do evangelho da Graça de Deus. E por isso, não se pode abrir mão da eleição. E isso amados irmãos, não é coisa de “presbiterianos”. Isso é o cristianismo bíblico, doa a quem doer. É por isso que a pregação apostólica foi considerada um “escândalo para os judeus” e uma “loucura para os gentios” (1Co 1.23). E ainda hoje, continua sendo inaceitável. “O homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente” (1Co 2.14).
Porque insistimos na eleição? Porque somos presbiterianos? Não. Porque somos crentes no evangelho de Cristo em sua integralidade.
Daí a importância de analisarmos o capítulo nove da Carta de Paulo aos Romanos. Aqui encontramos uma palavra irrefutável. Trata-se da Escritura Sagrada, que nós afirmamos ser nossa única base de fé e prática. Estamos dispostos a ouvi-la? Então prossigamos.
Texto e comentário de Romanos 9
1 Digo a verdade em Cristo, não minto, testemunhando comigo, no Espírito Santo, a minha própria consciência: 2 tenho grande tristeza e incessante dor no coração; 3 porque eu mesmo desejaria ser anátema, separado de Cristo, por amor de meus irmãos, meus compatriotas, segundo a carne. 4 São israelitas. Pertence-lhes a adoção e também a glória, as alianças, a legislação, o culto e as promessas; 5 deles são os patriarcas, e também deles descende o Cristo, segundo a carne, o qual é sobre todos, Deus bendito para todo o sempre. Amém!
Os primeiros cinco versículos do capítulo introduzem o tema que será tratado pelo apóstolo Paulo. Até o capítulo 11 desta carta ele fala da aplicação do evangelho aos judeus. Aqui ele aborda a eleição como base para a compreensão da rejeição do evangelho por parte dos judeus, e sua aceitação por parte dos gentios.
Eleição, amor pelas almas perdidas e missões
Paulo sofre porque a maioria de seus compatriotas rejeita o evangelho de Cristo. Seu sofrimento é demonstrado no v. 2: “tenho grande tristeza e incessante dor no coração”. A angústia de Paulo é tão profunda que, se ele pudesse, trocaria de lugar com seus irmãos na carne, tornando-se maldito (“anátema” e “separado de Cristo”) para salvar aos seus queridos (v. 3). O apóstolo reconhece a situação irônica dos seus irmãos judeus: representantes da religião revelada, guardiães da “adoção”, das “aliança”, da “legislação”, do “culto” e das “promessas”; descendentes dos “patriarcas” e no meio dos quais surgiu o próprio Messias, o Senhor Jesus Cristo (v. 4-5), porém, incrédulos e perdidos!
A atitude de Paulo é digna de nota. Verificaremos adiante que ele atribui este endurecimento dos judeus à eleição divina. No entanto, ele agoniza por eles. Isso significa que a doutrina da eleição não nos impede de chorarmos e nos sacrificarmos pelos perdidos. Pelo contrário, devemos chorar e nos empenhar pela salvação daqueles que não conhecem a Jesus. Devemos continuar clamando todos os dias pela salvação de nossos queridos. Devemos continuar pregando “a tempo e fora de tempo”, objetivando ganhar o máximo de pessoas para o nosso Senhor (2Tm 4.2). Não podemos esquecer que o mesmo apóstolo escreve mais adiante, em Romanos 10.9-15:
9 Se, com a tua boca, confessares Jesus como Senhor e, em teu coração, creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo. 10 Porque com o coração se crê para justiça e com a boca se confessa a respeito da salvação. 11 Porquanto a Escritura diz: Todo aquele que nele crê não será confundido.
12 Pois não há distinção entre judeu e grego, uma vez que o mesmo é o Senhor de todos, rico para com todos os que o invocam. 13 Porque: Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo.
14 Como, porém, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? 15 E como pregarão, se não forem enviados? Como está escrito: Quão formosos são os pés dos que anunciam coisas boas!
Entendamos este ensino claro da Palavra de Deus. A doutrina da eleição não gera frieza na obra de evangelização e missões. Pelo contrário, grandes e poderosos movimentos de pregação do evangelho deram-se em períodos de firme ênfase nas doutrinas da graça. Igreja Metodista Calvinista, a Igreja Batista Calvinista e outras denominações reformadas testemunham isso. George Whitefield pregava as doutrinas da pura graça a multidões de cinco mil pessoas, com centenas de conversões. Charles H. Spurgeon, denominado de “príncipe dos pregadores”, pregava todos os domingos de manhã para multidões de seis mil ouvintes, que às vezes acampavam na neve para conseguir lugar para ouvi-lo. Seu tema constante: o evangelho da graça. Sua ênfase predominante: a doutrina calvinista, ou melhor dizendo, “paulinista”) da eleição. E todos esses homens eram como chamas que não se consumiam, cheios de fogo e fervor espiritual, que choravam dia e noite, pregando o evangelho com todo o vigor e sendo instrumentos de Deus para a transformação de vidas.
Atualmente alguns evangelistas e missionários usam o texto de Mateus 24.14: “E será pregado este evangelho do reino por todo o mundo, para testemunho a todas as nações. Então, virá o fim”. Eles afirmam, a partir destas palavras, que o evangelho deve ser pregado a todas as pessoas porque Deus quer que todas elas sejam salvas. Portanto, a doutrina da eleição não deve ser aceita pelos cristãos que querem comprometer-se com missões.
Argumento furado. Isso porque, em primeiro lugar, o versículo (assim como o restante da Bíblia) não diz que o evangelho deva ser pregado “a todas as pessoas de todo o mundo”. O termo grego traduzido por nações (ἔθνος, ethnos) significa “grupos étnicos”, ou seja, o testemunho do evangelho do reino aqui descrito é para grupos linguísticos e culturais e não indivíduos. Se apenas uma pessoa de uma tribo não alcançada ouvir compreensivelmente o evangelho do reino, então este versículo estará cumprido para aquele grupo étnico.
Em segundo lugar, a pregação do evangelho não visa a conversão de todas as pessoas de cada nação, mas sim o testemunho de Deus àquele povo. Em nenhum lugar a Bíblia ensina que o evangelho converterá o mundo. Slogans entusiásticos do tipo “vamos transformar o mundo” ou “o evangelho mudando as nações” são utópicos e antibíblicos. Somente “um remanescente é que será salvo” (Rm 9.27).
Que remanescente é esse? São os eleitos de Deus. Em Apocalipse 7 João vê quatro anjos segurando o derramamento do juízo final sobre a terra (v. 1). Surge um outro anjo, “tendo o selo do Deus vivo”, que clama dizendo que o fim dos tempos não pode ser deflagrado “até selarmos na fronte os servos do nosso Deus” (v. 2-3). Tais selados correspondem a 144 mil (12 vezes 12 mil), um número simbólico ligado à totalidade do povo escolhido de Deus (v.4-8).
Para que serve a obra missionária? Para, de modo geral, dar testemunho de Deus a todos os grupos étnicos da terra, e para, de modo específico, alcançar os eleitos, que serão “selados” pelo Altíssimo (cf. Ef 1.13-14).
Será que os presbiterianos, esses “esquisitos” que creem nessa doutrina “esquisita” da predestinação preocupam-se com missões? Pergunte-se isso às agências missionárias. Será constatado que nossa denominação é uma das que mais enviam obreiros em várias agências missionárias do Brasil e do mundo. Fazemos isso por obediência à comissão de nosso Deus e por amor às almas que se perdem.
A eleição é incondicional
6 E não pensemos que a palavra de Deus haja falhado, porque nem todos os de Israel são, de fato, israelitas; 7 nem por serem descendentes de Abraão são todos seus filhos; mas: Em Isaque será chamada a tua descendência.
8 Isto é, estes filhos de Deus não são propriamente os da carne, mas devem ser considerados como descendência os filhos da promessa. 9 Porque a palavra da promessa é esta: Por esse tempo, virei, e Sara terá um filho.
10 E não ela somente, mas também Rebeca, ao conceber de um só, Isaque, nosso pai. 11 E ainda não eram os gêmeos nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal (para que o propósito de Deus, quanto à eleição, prevalecesse, não por obras, mas por aquele que chama), 12 já fora dito a ela: O mais velho será servo do mais moço.
13 Como está escrito: Amei Jacó, porém me aborreci de Esaú.
14 Que diremos, pois? Há injustiça da parte de Deus? De modo nenhum! 15 Pois ele diz a Moisés: Terei misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia e compadecer-me-ei de quem me aprouver ter compaixão.
16 Assim, pois, não depende de quem quer ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia. 17 Porque a Escritura diz a Faraó: Para isto mesmo te levantei, para mostrar em ti o meu poder e para que o meu nome seja anunciado por toda a terra.
18 Logo, tem ele misericórdia de quem quer e também endurece a quem lhe apraz.
Os v. 6-18, formam o primeiro bloco de argumentação de Paulo. Ele chama a atenção para um fato importante: Se Deus havia dado aos judeus uma aliança na qual ele prometia-lhes a salvação, e agora eles haviam rejeitado essa salvação, será que isso invalidaria a promessa do Senhor? A palavra do apóstolo é taxativa: Não. Deus jamais invalida suas promessas. O que ocorre é que sua promessa dirige-se não a “todos os judeus”, e sim, apenas aos eleitos, chamados por Paulo de “filhos da promessa” (v. 6-8). Ele ilustra isso, mostrando que o pacto efetuado com Abraão vincula-se à eleição, demonstrada mais claramente nos filhos de Isaque (v. 9-13). Com relação a eles, a Escritura nos ensina que “ainda não eram os gêmeos nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal (para que o propósito de Deus, quanto à eleição, prevalecesse, não por obras, mas por aquele que chama), já fora dito a ela: O mais velho será servo do mais moço. Como está escrito: Amei Jacó, porém me aborreci de Esaú” (v. 11-13).
Em suma, Paulo ensina acerca de uma eleição incondicional. Deus escolheu Jacó e rejeitou Esaú independentemente de seu comportamento, ou melhor, de suas obras (v. 11-12). A escolha decorre do propósito de Deus, “aquele que chama” (v. 11). Isso quer dizer que Deus escolhe por sua pura graça e vontade e não porque ele prevê que nós iremos crer. Em linguagem teológica, afirmamos que a eleição de Deus baseia-se em sua soberania, e não em sua onisciência. Ele não escolhe porque sabe quem vai crer. Pelo contrário, ele sabe quem vai crer porque ele já escolheu. A fé é decorrente do decreto divino e não vice-versa.
A justiça de Deus na eleição
Talvez os versículos mais impopulares de Romanos 9 sejam os v. 14-15:
14 Que diremos, pois? Há injustiça da parte de Deus? De modo nenhum! 15 Pois ele diz a Moisés: Terei misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia e compadecer-me-ei de quem me aprouver ter compaixão.
Nós não podemos criticar Deus por sua eleição. Deus é um ser santo e, por conseguinte, justo e bom. Santidade e perfeição são pontos proeminentes de seu caráter. Seu amor é inquestionável, mediante a revelação que ele faz de si mesmo em seu Filho Jesus Cristo (Êx 34.6-7; Lv 11.44-45; 19.2; Jo 1.14; 3.16; Rm 5.7-8; 1Jo 4.8; Ap 15.3-4). Um crente não julga a Deus pelo que ele faz, mas simplesmente crê e submete-se alegremente à sua boa e santa vontade (Rm 12.1-2). Alguns dirão que isso é alienação, a Bíblia, no entanto, chama isso de fé.
Chegamos então àquela palavrinha incômoda, encontrada duas vezes no texto (na Almeida Revista e Atualizada): “aprouver” (v. 15). A Almeida Século 21 traduz assim: “Terei misericórdia de quem eu quiser ter misericórdia e compaixão de quem eu quiser ter compaixão”.[1] Sem alteração do sentido, a Almeida Revista e Corrigida (ARC) traz: “Compadecer-me-ei de quem me compadecer e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia”. Na Nova Tradução na Linguagem de Hoje lemos o seguinte: “Terei misericórdia de quem eu quiser; terei pena de quem eu desejar”.
O v. fala primeiro de “misericórdia” (ἔλεος, eleos), uma demonstração de bondade para com uma pessoa necessitada (cf. Ef 2.4). Paulo aponta para a ação divina em favor do objeto por ele considerado. A expressão seguinte, “compaixão” (οἰκτίρω, oiktirō) denota o afeto que produz a ação. Deus identifica-se em seu íntimo com nossa miséria. Ele sente nosso infortúnio e age bondosamente a fim de ajudar-nos.
Observemos, no entanto, que a ação de Deus decorre de sua soberania. “Compadecer-me-ei de quem me compadecer e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia” (v. 15; ARC). Aqui reside o ponto de discussão e controvérsias, bem como o corolário da sã doutrina: Deus salva a quem ele quer. Ele é soberano. Ele escolhe quem quiser, e ninguém pode julgá-lo por isso. Ele é Deus e pronto, ponto final. Ele tem misericórdia e demonstra compaixão por quem quer e eu não sou digno de questioná-lo por isso. Eu não estou nem mesmo em condições de fazer tal questionamento. Ele é Deus e eu sou criatura. Ele não me deve satisfações. Ele é soberano, livre para fazer o que quiser, com quem quiser, como quiser, quando quiser. Sua soberania opera em harmoniosa consonância com sua santidade e bondade, de modo que ele jamais fará nada pecaminoso, ou injusto, ou fora dos parâmetros de seu infinito amor. Eis o Deus das Escrituras, por mais impopular que pareça aos ouvidos da humanidade moderna e pós-moderna.
Os v. 16-18 desferem o golpe final nas pretensões do orgulho humano:
16 Assim, pois, não depende de quem quer ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia. 17 Porque a Escritura diz a Faraó: Para isto mesmo te levantei, para mostrar em ti o meu poder e para que o meu nome seja anunciado por toda a terra.
18 Logo, tem ele misericórdia de quem quer e também endurece a quem lhe apraz.
A base de nossa salvação não é o nosso querer, mas o fato de Deus usar o seu favor para conosco. Em nenhuma instância de seu plano, Deus baseou nossa salvação em nossa vontade. Ele buscou sim, fazer as coisas de tal modo que nossa vontade não fosse violada. Sua graça operou em nós, circunstâncias foram criadas, o evangelho foi pregado, o Espírito Santo visitou-nos e fez-nos nascer de novo, convencendo-nos do pecado, da justiça e do juízo. Recebemos a fé para crermos em Cristo e nossa vontade foi atraída com os laços de amor do evangelho. Isso, no entanto, não significa que fomos nós que optamos por Cristo à parte da ação de Deus em nossos corações. A regeneração decorre da graça e misericórdia divinas e não de nossas decisões isoladas. A vontade humana, na conversão, reage estimulada pelo chamado eficaz do Espírito Santo, de modo que podemos afirmar que, de certo modo, o homem é o agente da fé, cujo objeto é Cristo. No aspecto último porém, esta fé, é “dom de Deus”.
Paulo ilustra isso falando do Faraó, acerca do qual a Bíblia repete várias vezes que negou-se a libertar o povo de Israel do Egito (cf. Êx 7.13, 22; 8.15, 19, 32; 9.7, 35). Faraó endureceu seu coração e não deixou o povo ir. São interessantes, no entanto, as passagens de Êxodo 9.12; 10.20; 11.10 e, finalmente, 14.4. Deus mesmo endureceu o coração do Faraó para ser glorificado nele e em todo o seu exército; “e saberão os egípcios que eu sou o Senhor” (Êx 14.4). A conclusão paulina, é que ele “compadece-se de quem quer e endurece a quem quer” (ARC).
Fica o espaço para um questionamento crucial: Se isso é assim, não tornam-se inúteis os diversos textos da Escritura que fazem apelo à nossa vontade, e que afirmam que todo aquele que buscar, achará a salvação? Podemos jogar no lixo os textos bíblicos que afirmam que o homem será condenado por não crer e não buscar a Deus?
Absolutamente não. Os textos que apelam à nossa vontade para que busquemos ao Senhor e nos consagremos a ele; as passagens bíblicas que alertam-nos para o perigo de sermos condenados, caso não sirvamos voluntariamente ao Senhor, são os instrumentos que o Espírito Santo usa para testemunhar a vontade de Deus aos perdidos e salvar, bem como santificar aos eleitos. É pela Palavra que os filhos de Deus são limpos e santificados (Jo 15.3). Por isso, afirmamos que a doutrina da eleição não contradiz os ensinos bíblicos acerca da necessidade de obediência, vigilância e santidade.
Permanece, porém, o sólido axioma: Deus é o “autor e consumador da fé” e único responsável por nossa salvação. Somente ele é que ministra a nós a sua graça soberana. Nossos corações orgulhosos e pecaminosos estão dispostos a dobrar-se diante dessa revelação? Eis o louvor que se encontra na alma dos verdadeiros crentes em Cristo:
33 Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! 34 Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? 35 Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído? 36 Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém! (Rm 11.33-36).
Vasos para honra e desonra: Criação e soberania de Deus
19 Tu, porém, me dirás: De que se queixa ele ainda? Pois quem jamais resistiu à sua vontade? 20 Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?! Porventura, pode o objeto perguntar a quem o fez: Por que me fizeste assim? 21 Ou não tem o oleiro direito sobre a massa, para do mesmo barro fazer um vaso para honra e outro, para desonra? 22 Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdição, 23 a fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória em vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão, 24 os quais somos nós, a quem também chamou, não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios? 25 Assim como também diz em Oseias: Chamarei povo meu ao que não era meu povo; e amada, à que não era amada; 26 e no lugar em que se lhes disse: Vós não sois meu povo, ali mesmo serão chamados filhos do Deus vivo.
27 Mas, relativamente a Israel, dele clama Isaías: Ainda que o número dos filhos de Israel seja como a areia do mar, o remanescente é que será salvo. 28 Porque o Senhor cumprirá a sua palavra sobre a terra, cabalmente e em breve; 29 como Isaías já disse: Se o Senhor dos Exércitos não nos tivesse deixado descendência, ter-nos-íamos tornado como Sodoma e semelhantes a Gomorra.
30 Que diremos, pois? Que os gentios, que não buscavam a justificação, vieram a alcançá-la, todavia, a que decorre da fé; 31 e Israel, que buscava a lei de justiça, não chegou a atingir essa lei. 32 Por quê? Porque não decorreu da fé, e sim como que das obras. Tropeçaram na pedra de tropeço, 33 como está escrito: Eis que ponho em Sião uma pedra de tropeço e rocha de escândalo, e aquele que nela crê não será confundido.
Os v. 19-33, formam o segundo bloco de argumentação de Paulo. Como é de seu costume, Paulo formula e responde objeções, com a finalidade de aclarar seu ensino. No v. 14, ele menciona o perigo de considerarmos Deus injusto por eleger quem ele quer. Agora, no v. 19, ele esboça um questionamento irônico, que normalmente é feito pelos que atacam a doutrina da predestinação: “De que se queixa ele ainda? Pois quem jamais resistiu à sua vontade?” Ou seja, por que Deus ainda exige algo de nós, se tudo já foi definido em seu decreto da predestinação? Se é da sua vontade que eu não seja salvo, então a responsabilidade por minha perdição ou salvação é dele e não minha!
Tal questionamento coloca a culpa da condenação em Deus. Os homens não passam de marionetes preordenados para um destino já traçado pelo Altíssimo. Sendo assim, eles são inocentes diante do caprichoso desígnio divino. Isso é muito sério porque implica em afirmar que Deus é o autor do mal moral ou seja, do pecado. Em suma, essa objeção ataca ferozmente o caráter e, por conseguinte, a confiabilidade de Deus. Enxerga no Senhor uma pessoa cruel, que exige algo que não pode ser cumprido e que ainda condena os homens por não fazê-lo. Um Deus assim, déspota, caprichoso e injusto, seria confiável?
O enfoque da resposta do apóstolo é duplo. Nos v. 19-29 ele trata da ação divina. Nos v. 30-33 ele fala da ação humana.
A discussão levantada no v. 19 é cortada pela raiz no v. 20. O homem não pode discutir com Deus, por que é criatura e não criador. O Criador é o Senhor. Ele tem direito de fazer o que quiser conosco, a nós e por nós. Deus é o Oleiro e nós, a massa. Ele nos modela como quer. Como oleiro soberano, ele é livre para criar o que desejar, produzindo algumas peças para honra e outras para desonra.
Nesse ponto Paulo vai mais fundo afirmando que Deus, intencionalmente, destinou alguns como “vasos de ira, preparados para a perdição” (v. 22), enquanto outros foram feitos para, através deles, manifestar “as riquezas de sua glória e misericórdia” (v.2 3). Tais vasos de “honra” somos nós, os crentes no evangelho. Em nós, Deus cumpre as profecias de Oseias 1.10 e 2.23. Um povo que não pertencia à aliança israelita seria chamado “povo de Deus” (cf. v. 24-27). Acerca de Israel, um “remanescente será salvo”, para que não ocorra o perecimento de toda a nação, como aconteceu com Sodoma e Gomorra (v. 27-29).
Eleição e responsabilidade humana
Havendo analisado a rejeição de Israel com base na eleição divina, o apóstolo chama a atenção para o lado humano do processo. Nem todos os de Israel eram da promessa. Deus salvaria apenas os escolhidos, enquanto condenaria aqueles “preparados para a condenação”. A perspectiva até aqui, tem sido a da ação de Deus na salvação. Nós não podemos deixar de afirmar o claro ensino da sua escolha incondicional e livre, por mais que isso nos faça ranger dentes.
O ponto a destacar agora é: Como Israel agiu no processo de sua reprovação? Entendemos, pela Escritura, que o povo judeu, preferiu buscar um modo de salvação baseado nas obras, através da guarda da lei. Considerou ridículo o oferecimento da salvação pela graça mediante a fé, rejeitou o evangelho e, com isso, tropeçou na “pedra de tropeço”, que é Cristo (v. 30-33). Observando os capítulos 10 e 11 da epístola, descobrimos que os judeus não se sujeitaram à justiça que “vem de Deus” (10.3), não “obedeceram ao evangelho” (10.16) e, não querendo dar ouvidos a Deus, foram um “povo rebelde e contradizente” (10.21). De fato, restou apenas um “remanescente segundo a eleição da graça” (11.5). A salvação buscada pelas obras fracassou, mas foi alcançada pela eleição, sendo que o restante do povo foi endurecido (11.7-10). Por causa de sua transgressão eles foram cortados da oliveira, dando espaço para a salvação dos não-judeus (11.11-24).
A conclusão é simples. Os não crentes merecem o juízo. Intencionalmente ele rejeitam o evangelho. Esta é a antinomia da doutrina da salvação: Deus é inteiramente responsável pela eleição, enquanto os homens são inteiramente responsáveis por sua condenação. Daí termos de admitir que a eleição é, em última análise, um mistério divino, uma revelação cuja plenitude jamais poderemos alcançar (Rm 11.33). Esse fato, no entanto, não nos exime de percebê-la na Palavra de Deus, nem de ensiná-la com convicção. Tudo o que é necessário para nossa salvação e edificação na fé é revelado no evangelho, e isso deve ser proclamado, mesmo que pareça “loucura” para uns e “escândalo” para outros que preferem uma religião confinada aos estreitos limites da razão humana.
Evidências da eleição
Uma última consideração textual deve ser feita, com base nos v. 23-24: “23 a fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória em vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão, 24 os quais somos nós, a quem também chamou, não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios?”
O apóstolo não hesita em afirmar sua convicção de que ele é um eleito. Falando dos “vasos de misericórdia”, ele disse que estes “somos nós”. Isso indica que podemos e devemos ter convicção de nossa eleição, ao contrário do que dizem alguns, que argumentam que “nós não temos como saber se somos eleitos”. As Escrituras afirmam que é possível que as pessoas reconheçam a nossa eleição, bem como podemos estar certos de nossa salvação (1Ts 1.3-4; 1Jo 5.13).
Há evidências ou características dos eleitos, conforme a Palavra de Deus. Os judeus demonstraram que eram reprovados mediante suas atitudes e comportamentos. Os eleitos evidenciam um andar “digno” de sua vocação” (Ef 4.1 et seq.). Eis suas marcas distintivas:
- O eleito acolhe inteira e unicamente o evangelho bíblico, entendendo que é alcançado pelo Espírito Santo, que aplica a salvação baseada na graça que opera mediante a fé, independentemente de obras ou méritos, senão os de Jesus Cristo (Rm 3.21-31; 10.3, 16; Gl 2.16; 3.1-7; Ef 2.8-9). Quem tropeça nesse ponto demonstra que não é escolhido para a salvação (Rm 9.31-33). Quem não crê nesse evangelho de pura graça é reprovado (Mc 1.15; Gl 4.8-11; Cl 2.13-23). Você crê no evangelho? Se sua resposta for “sim”, então você é um eleito de Deus.
- O eleito obedece ao evangelho. Ele não é “rebelde e contradizente” (Rm 10.21). Quem se diz crente mas não se submete a Deus e à sua Palavra, revela que jamais conheceu ao Senhor Jesus. A Bíblia fala de pessoas que, apesar de religiosas, são escravas da iniquidade, e portanto, desconhecidas de Jesus. Elas serão condenadas no dia do juízo (Mt 7.21-23). Dito de outro modo, o eleito caminha em santidade (Ef 1.4; 2Tm 2.19-21).
- O eleito confia totalmente em Deus (Rm 9.23-24). O apóstolo Paulo sabia que seu nome constava na lista dos eleitos. Ele encontrou-se pessoalmente com o Senhor da Glória. Por isso podia dizer, “os quais somos nós”. Isso é assim porque a conversão verdadeira gera confiança (cf. 2Tm 1.12; Hb 4.16; 10.19-22, 35, 39; 11.1, 6). Dizer-se crente sem confiar na promessa de Deus é uma contradição! Os eleitos, mesmo que atacados pelo acusador, batalham agressivamente, utilizando a Palavra de Deus e o sangue de Cristo —e vencem (Ap 12.11).
- O eleito experimenta a graça e a paz do Senhor. Ele tem paz com Deus, consigo mesmo e com o próximo (Jo 14.1, 27; Rm 5.1; Ef 2.13-18; cf. Mt 5.21-26; 18.21-22; Jo 17.20-23; Rm 12.9-21; 16.17-20; Fp 2.1-11; Hb 12.12-17; Tg 3.13-18). Essa paz é abastecida continuamente na comunhão do crente com o Senhor (Mt 11.28-30).
- O eleito tem, dentro de si, o Espírito Santo que confirma que “ele é um filho de Deus” (Rm 8.14-16).
- O eleito assume sua tarefa como agente da aliança em sua geração, abençoando o mundo, praticando boas obras, frutificando no reino de Deus e proclamando as virtudes divinas (Gn 12.1-2; Mt 5.13-16; Jo 15.16; Tt 2.11-14; 3.1-7; 1Pe 2.9).
- O eleito prepara-se para a volta do Senhor. Ele vigia e ora, alimentando-se da Escritura e buscando, a cada dia, uma maior fidelidade, de modo a não ser encontrado despreparado (Mt 24.42-44, 46, 48-51; 25.1-13, 19, 21, 23, 30, 41-46; 1Co 15.22; 2Pe 3.11-14; 1Jo 2.28-29).
Em suma, o eleito não é desleixado. Pelo contrário, em todos os tempos em que a eleição é enfatizada de modo equilibrado e prático, a igreja experimenta consagração, serviço e santidade.
Conclusão
Esta análise nos conduz às seguintes verdades:
- Os judeus não creram no evangelho porque Deus, em sua eleição soberana, escolheu alguns para a salvação e determinou outros para a perdição.
- A eleição divina não elimina a responsabilidade humana. Os réprobos agem segundo as escolhas de seus próprios corações. São desobedientes, orgulhosos e transgredem voluntariamente a Palavra de Deus. Sendo assim, o Senhor é justo em condenar aos réprobos, e misericordioso em salvar alguns.
- Em nossa pecaminosidade e finitude, nós não podemos criticar ou julgar a Deus, nem entender plenamente os seus desígnios infinitos, santos, justos e bondosos.
- Os eleitos são santificados e moldados conforme o caráter e a mandato de Cristo, honrando a Deus com suas vidas transformadas.
Devemos glorificar ao Senhor por sua transcendência. Dele, por meio dele e para ele são todas as coisas. Dele é a glória eternamente (Rm 11.36). Considerando Romanos 9 a 11, não temos como negar o ensino da eleição incondicional. Esta não é uma doutrina de homens, muito menos de uma denominação cristã. É verdade absoluta da Palavra de Deus. Sendo assim, a aceitação desta doutrina não é facultativa. Temos de aceitar tal ensino com alegria, gratidão, temor e tremor, buscando viver vidas santas e confirmando, através de nosso testemunho, a nossa eleição (Ef 1.4-6, 11-12; 1Ts 1.3-4; 2Tm 2.19).
Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz (1Pe 2.9).
Nota
[1] A paráfrase de Peterson (A Mensagem) confunde o leitor ao invés de ajudar: “Misericórdia é comigo mesmo. Compaixão é comigo mesmo”. Isso é bonito, mas deixa de transmitir a ideia central contida no texto grego original.
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