O presente texto não resulta de cogitações teóricas de gabinete, mas de prática pastoral. O contato cotidiano com os crentes exige, repetidas vezes, a resposta à pergunta: “Pastor, qual é a posição de nossa igreja sobre os dons espirituais?”
Ao longo de minha caminhada cristã eu escrevi três textos sobre este assunto, o primeiro em 1997, enquanto pastor auxiliar da Igreja Presbiteriana Central do Gama, no Distrito Federal. Um segundo texto, intitulado O Cristão Frutífero, surgiu em 2001 (editado em 2002 e 2004). O terceiro foi iniciado em 2008-2009 — um trabalho em quatro partes, (1) O Espírito Santo e o Discípulo no Pacto; (2) Os Ofícios Extraordinários e Temporários; (3) O Pastor-Mestre e (4) A Prática dos Dons Espirituais (este último ainda não finalizado).
Quem me conhece ao longo destes anos verifica, por um lado, consistência na tese fundamental: Os dons espirituais são importantes; Deus capacita sobrenaturalmente os crentes para a realização de sua obra. Por outro lado, ocorreu uma mudança radical na direção do cessacionismo, decorrente de minha compreensão de que os dons devem ser entendidos dentro da moldura do pacto e à luz da doutrina dos ofícios.
Alguns conceitos resumidos
A fim de estabelecer um correto entendimento da matéria, informo os significados de alguns termos.
Restauracionismo: Neste posto, o termo restauracionismo é usado significando a crença em que Deus está restaurando, nos dias de hoje, uma igreja semelhante à do 1º século, segundo o modelo do livro de Atos. Neste caso, não se trata apenas de uma atualização de princípios bíblicos da igreja de Atos, mas também de replicação de suas experiências. Crê-se, dentre outras coisas, que o Espírito Santo contempla os crentes de hoje com profecias revelatórias; no ponto extremo, há igrejas que também abraçam a ideia de contemporaneidade do apostolado.
O termo cessacionismo indica a crença de que os dons espirituais citados no NT estão ligados não apenas ao serviço dos crentes em geral, mas também ao exercício dos ofícios de apóstolo, profeta, evangelistas, pastores e mestres, citados em Efésios 4.11.
Os três primeiros ofícios são extraordinários e temporários, ao passo que o ofício de pastor e mestre é ordinário e permanente.[1] O trabalho dos apóstolos e profetas é temporário porque eles lançaram um fundamento — o conjunto de escritos do Antigo Testamento (AT) e NT (Ef 2.20; cf. 1Co 3.10-11). Uma vez terminado o fundamento, cessou o trabalho dos apóstolos e profetas, bem como dos evangelistas (que eram assistentes dos apóstolos — cf. Tt 1.5 et seq.). Uma vez que não há mais o ofício do profeta, cessou o dom de profecia e, por conseguinte, cessaram as revelações, bem como o dom de operação de milagres e curas, ligados ao serviço apostólico. Comentando a “tão grande salvação” citada em Hebreus 2.3-4, Lloyd-Jones argumenta:
Primeiramente, ela [esta salvação] começou pela proclamação do próprio Senhor, e a seguir foi confirmada por aqueles que a ouviram, isto é, pelos apostolos. Deu testemunho a eles (os apóstolos), através de “sinais” e “prodígios” — a sugestão sendo, com toda certeza, que esses dons e manifestações particulares lhes foram dados a fim de atestar sua autoridade apostólica, e, portanto, uma vez feito isso, e uma vez possuindo nós seu ensino como o temos aqui, não há mais necessidade de tais dons.[2]
Sendo assim, o cessacionismo, tal como colocado aqui, não nega que Deus cure ou faça milagres hoje, nem que ele responda às orações, ou mesmo que distribua dons espirituais à igreja. O que se afirma é que, uma vez finalizada a escrita dos 66 livros da Bíblia e consolidada a igreja, absoluta e definitivamente cessaram as profecias revalatórias.[3]
Entenda-se ainda, como cessacionismo, neste trabalho, o entendimento de que o dom de línguas do NT é a capacidade de falar idiomas humanos não estudados. Dentre os estudiosos que concordam com este ponto de vista, podemos citar João Calvino,[4] Simon Kistemaker,[5] Abraham Kuyper[6] e Sinclair Ferguson.[7]
O presbiterianismo da IPB é cessacionista
O entendimento da Igreja Presbiteriana do Brasil, quanto aos ofícios e dons espirituais, é cessacionista. Isso é confirmado pelas seguintes evidências:
Primeiro, a IPB adota a Confissão de Fé de Westminster (CFW) como “sistema expositivo de doutrina e prática”.[8] A CFW é cessacionista, como lemos logo em seu início: “Isso torna indispensável a Escritura Sagrada, tendo cessado aqueles antigos modos de revelar Deus a sua vontade a seu povo”.[9]
Há quem tente complicar o que é simples, argumentando que esta afirmação trata da cessação da revelação sobre a soteriologia. “Acerca da salvação e santificação”— dizem — “está tudo na Bíblia; não há mais revelação. No entanto, para a direção cristã diária, há novas revelações; eu creio no texto da CFW — afirmam com convicção — mas com esta observação: Nosso Senhor ainda concede à igreja o dom de profecia, além de todos os outros dons do NT”. Confesso que já pensei assim; cheguei mesmo a propor, em O Cristão Frutífero, uma posição que denominei erroneamente “contemporaneidade reformada”. O ponto a destacar é que tal entendimento exige “incluir” no texto na CFW o que não consta lá.
A segunda evidência de cessacionismo da IPB é o texto da Forma de Ordenação de Ministros do Evangelho:
Os apóstolos, os profetas e os que possuíam o dom de línguas, de curar e fazer milagres foram oficiais extraordinários empregados, a princípio, por nosso Senhor e Salvador para reunir seu povo de entre as nações, conduzindo-o à família da fé. Esses oficiais e dotes miraculosos cessaram há muito tempo.[10]
O texto do Manual do Culto da IPB não dá margem a dúvidas. Com a cessação dos ofícios extraordinários, cessaram também os dons de profecia, línguas, de curar e fazer milagres. Uma vez que o Manual de Culto é um documento oficial da IPB, quem disser que não há documento oficial da igreja assumindo o cessacionismo desconhece ou desconsidera a verdade.
A terceira evidência da posição cessacionista da IPB é o seu conjunto de publicações. Sabe-se que as denominações investem em casas publicadoras com o objetivo de edificar e doutrinar seus membros. Uma verificação nas obras traduzidas e publicadas pela igreja demonstrará o cuidado do Conselho Editorial da Cultura Cristã de publicar livros sobre o assunto sempre defendendo o cessacionismo.
Uma última evidência do cessacionismo da IPB é o seu digesto — o corpo de decisões de seu Supremo Concílio — que repudia, em termos conceituais, práticos e litúrgicos, tanto o pentecostalismo quanto o neopentecostalismo. Aqueles que argumentam que não há qualquer decisão do Supremo Concílio condenando a ideia de continuidade de profecias revelatórias, normalmente deixam de observar as decisões concernentes ao pentecostalismo e neopentecostalismo. Ademais, apesar das constantes críticas e condenações do pentecostalismo e neopentecostalismo, não existe unicamente uma linha, nos textos das decisões conciliares da IPB, defendendo a posição restauracionista.
Alguns perigos do restauracionismo
Por qual razão devemos ser contrários ao restauracionismo dentro da IPB?
A Bíblia deixa de ser suficiente para dirigir a igreja e o indivíduo
Em primeiro lugar, o restauracionismo coloca em risco a suficiência da Escritura em dirigir a igreja e o indivíduo. Como afirmou um estudioso reformado:
A implicação lógica da suficiência da Escritura consiste em que não há mais necessidade de qualquer revelação adicional para a igreja ou para o indivíduo. O de que se necessita é de iluminação. Daí a doutrina da reforma, sola Scriptura.[11]
O mesmo autor afirma:
O perigo carismático é confundir iluminação com revelação de tal sorte que a diferença entre revelação apostólica e nossa compreensão e resposta a ela corre o risco de, de facto, desmoronar. Se a revelação especial de Deus continua de uma maneira extrabíblica, há uma probabilidade psicológica de que a mesma venha a exercer uma função canônica.[12]
Apesar de apregoar a autoridade da Bíblia, a Igreja Católica Apostólica Romana aceita novas revelações (publicadas pelo magistério da igreja).[13] O que ocorre na prática? A autoridade da tradição suplanta a autoridade da Bíblia (naquilo que a tradição contradiz a Bíblia, por exemplo, o dogma da assunção de Maria, a maioria dos fiéis acata a tradição). Nas igrejas ditas evangélicas que afirmam a autoridade da Bíblia e ao mesmo tempo creem em novas revelações, há casos em que a palavra do “apóstolo” ou “profeta” tem peso igual ou superior às Escrituras. Esse primeiro perigo do restauracionismo já deveria ser suficiente para seu repúdio.
Os crentes ficam confusos quanto à sua identidade presbiteriana
O restauracionismo coloca em risco a identidade presbiteriana da igreja. A interpretação das experiências religiosas conforme a moldura restauracionista diverge da moldura teológica da IPB, abrindo espaço para a formação de crentes com perfis de doutrina, culto e prática mais assemelhados aos carismáticos, neopentecostais ou pentecostais do que, de fato, presbiterianos.
A unidade da igreja é ameaçada
O restauracionismo coloca em risco a unidade local e federativa da igreja. Crentes tradicionais sentem dificuldade em integrar-se em igrejas que assumem a contemporaneidade das profecias revelatórias. Ademais, a perspectiva doutrinária e prática das igrejas que assumem tal perfil as aproximam de outras denominações, ao mesmo tempo as distanciam das igrejas-irmãs presbiterianas.
A unidade local é ameaçada, uma vez que os crentes doutrinados nos termos do restauracionismo, normalmente verão o cessacionismo como uma ameaça à fé viva. O próximo passo será dizerem que o que importa é “obedecerem a Deus e não aos homens”. Eles considerarão que estão sendo “perseguidos por causa da justiça” e que o Espírito Santo os está impulsionando para a vivência em um contexto de maior consagração e relevância. Infelizmente tenho visto isso acontecer muitas vezes. Daí para a divisão de fato é um pequeno passo.
A sucessão pastoral é dificultada
O restauracionismo coloca em risco a sucessão pastoral das igrejas, uma vez que dificulta a identificação dos crentes com um pastor com convicções presbiterianas cessacionistas.
Confusão quanto ao ministério feminino
Por fim, o restauracionismo coloca em risco a compreensão doutrinária da IPB sobre ministério feminino.
Ao confundir ofícios e dons, as igrejas restauracionistas abrem espaço para o reconhecimento de um “dom pastoral” concedido a mulheres. Mais uma vez confesso que já abracei tal convicção, especialmente porque isso combinava com meu interesse em ter mulheres liderando classes da escola dominical e grupos pequenos, além de minha simpatia e apoio ao trabalho de missionárias em congregações e pontos de pregações.
O problema no entendimento restauracionista — especificamente nesta questão da possibilidade de existência de um “dom pastoral” dado às mulheres — é que isso se confronta com a posição da IPB, baseada na interpretação sadia de 1Timóteo 2.12. Se entendemos que o Espírito Santo inspirou Paulo a ensinar que mulheres não podem exercer o ofício pastoral, fica estranho reconhecer que o mesmo Espírito conceda às mulheres um “dom pastoral”. Não seriam os dons capacitações para o exercício dos ofícios? O reconhecimento e o apoio a tal “dom pastoral” gera equívocos. Observe-se que na maioria das igrejas restauracionistas, como prática consistente com a Teologia, ordenam-se ou consagram-se “pastoras”. Neste ponto a prática restauracionista é semelhante à prática das igrejas que assumem a leitura crítica do NT (o liberalismo teológico que considera as instruções de Paulo por demais preconceituosas e patriarcais).
O ideal é aceitar o ensino bíblico, confessional e denominacional, de que mulheres operam como professoras da escola dominical, líderes de grupos familiares e missionárias como “auxiliadoras”, sob liderança masculina da igreja.
Conclusão
O restauracionismo produz muito mais prejuízos do que benefícios. Ainda que seus defensores sejam algumas vezes bem-intencionados, é necessário estudo da Escritura e da sã doutrina, a fim de corrigir o erro.
Parece que o momento atual exige um estudo da Reforma por outro ângulo. Normalmente destaca-se o embate dos reformadores com o romanismo, deixando-se de considerar que eles batalharam duramente contra os entusiastas que acreditavam na continuidade de profecias revelatórias. No centro da batalha estava o sola Scriptura. Tanto os papistas quanto os entusiastas diziam que valorizavam a autoridade da Bíblia, mas João Calvino insistiu que a aceitação da suficiência das Escrituras exigia o cessacionismo. Sendo assim, sou reformado, sou presbiteriano, sou cessacionista.
[clear]
Notas
[1] Além do ofício de pastor e mestre exercido no presbiterato, temos ainda, como ordinário e permanente, o ofício de diácono (1Tm 3.8-13). Cf. BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 538-540.
[2] LLOYD-JONES. Grandes Doutrinas Bíblicas: Deus o Espírito Santo. São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1998, p. 347; grifo nosso.
[3] Ainda que haja menção a “carismas proféticos” no 2º século (JUSTINO MÁRTIR. Diálogo Com Trifão, 82. In: JUSTINO MÁRTIR. Santo Justino de Roma: I e II Apologias: Diálogo Com Trifão. São Paulo: Paulus. 1995, p. 238. [Série Patrística]), o argumento cessacionista é que, com a consolidação da igreja, no 3º século, o dom profético cessou (WARFIELD, Benjamin B. Counterfeit Miracles. New York: Charles Scribner’s Sons, 1918, passim).
[4] CALVINO, João. Comentário à Sagrada Escritura: 1Coríntios. São Paulo: Edições Paracletos, 1996, p. 409.
[5] KISTEMAKER, Simon. Comentário do Novo Testamento: 1Coríntios. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 616.
[6] KUYPER, Abraham. A Obra do Espírito Santo. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 162-167. Observe-se que Kuyper situa o milagre das línguas na audição além da fala.
[7] FERGUSON, Sinclair B. O Espírito Santo. São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2000, p. 291-294.
[8] CAMPOS, Silas (Org.). Manual Presbiteriano: Constituição da Igreja Presbiteriana do Brasil — CI/IPB. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, Capítulo I. Art. 1º, p. 9.
[9] CFW 1.1. Grifo nosso.
[10] IGREJA PRESBITERIANA DO BRASIL. Manual do Culto. São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 79; grifo nosso.
[11] FERGUSON, op. cit., p. 318.
[12] Ibid., p. 322; grifo nosso.
[13] Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Dei Verbum: Constituição Dogmática Sobre a Revelação Divina. 13. ed. São Paulo: Paulinas, 2006, Capítulo II: A Transmissão da Revelação Divina, Seção 7, p. 12.
Referências bibliográficas
ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER. A Confissão de Fé.
BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2001.
CALVINO, João. Comentário à Sagrada Escritura: 1Coríntios. São Paulo: Edições Paracletos, 1996.
CAMPOS, Silas (Org.). Manual Presbiteriano. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.
CONCÍLIO VATICANO II. Dei Verbum: Constituição Dogmática Sobre a Revelação Divina. 13. ed. São Paulo: Paulinas, 2006.
FERGUSON, Sinclair B. O Espírito Santo. São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2000.
IGREJA PRESBITERIANA DO BRASIL. Manual do Culto. São Paulo: Cultura Cristã, 1999.
JUSTINO MÁRTIR. I e II Apologias: Diálogo com Trifão. São Paulo: Paulus. 1995, p. 238. (Série Patrística).
KISTEMAKER, Simon. Comentário do Novo Testamento: 1Coríntios. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.
KUYPER, Abraham. A Obra do Espírito Santo. São Paulo: Cultura Cristã, 2010.
LLOYD-JONES. Grandes Doutrinas Bíblicas: Deus o Espírito Santo. São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1998.
WARFIELD, Benjamin B. Counterfeit Miracles. Reimp. 2011. New York: Charles Scribner’s Sons, 1918.
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