Antes de qualquer coisa esclareço que sou cristão reformado conservador. O termo “cristão” indica minha alegre e grata convicção de que fui alcançado pela graça salvadora de Deus, que me deu vida e resgatou-me do pecado e do inferno por meio da morte, ressurreição e exaltação do Senhor Jesus Cristo. Identifico-me como um “nascido de novo”, um pecador que foi regenerado pelo Espírito Santo e agora é contado entre os discípulos do Redentor. A palavra “reformado” é usada aqui com o sentido de herdeiro das doutrinas dos pais reformadores: Martinho Lutero, João Calvino, os teólogos de Dort e Westminster e, mais recentes, os neocalvinistas Abraham Kuyper, Herman Dooyeweerd e, de espírito mais eclético mas nem um pouco menos bíblico, Francis Schaeffer. Ao dizer que sou conservador apenas reafirmo minha crença na Bíblia como Palavra de Deus inspirada, inerrante, infalível e suficiente.
Tais afirmações indicam que creio no que a Bíblia ensina como provindo de Deus, tanto para minha salvação, quanto para minha edificação e correção. Isso se aplica a tudo o que a Escritura revela sobre anjos e demônios, sobre a luta espiritual e sobre o reino parasita do inimigo-sem-nome, Satanás (Ef 6.10-20). Sei que as hostes infernais atacam o crente individualmente e a Igreja, corporativamente (Zc 3.1-4; At 5.3-5). Sei que, lidando com o inimigo, não se deve “baixar a guarda”, até mesmo nos mínimos atos administrativos (1Pe 5.6-11; 1Cr 21.1 et seq.). Oro e suplico, diariamente, que Deus me guarde, e também a minha família, a igreja local sob meus cuidados e toda a Igreja militante dos infames ataques do anjo-derrotado (Mt 6.13).
Desculpem-me pela longa introdução, mas precisava dizer tudo isso para evitar mal-entendidos, uma vez que este artigo contém minhas primeiras idéias sobre a espiritualização da administração. Entendo que, retiradas do contexto, minhas observações podem ser consideradas um tanto quanto “incrédulas”. Alguém pode dizer, por exemplo, que minhas opiniões confirmam que fui influenciado pela secularização ou que perdi minha “unção”, se é tal afirmação pode ser aplicada a um crente neotestamentário. Enfim, estou certo de que minhas opiniões nesse particular podem soar muito estranhas e “carnais”, mas me disponho a correr o risco.
Como sempre, antes de entrar no assunto, eis alguns conceitos.
O que é administração
Enquanto pastoreio é sinônimo de serviço pastoral e significa o conjunto de ações, biblicamente modeladas, empreendido para o agrado de Deus e a edificação da igreja, administração é “a condução racional das atividades de uma organização, seja ela lucrativa ou não-lucrativa”,[1] com a finalidade de “planejar, organizar, dirigir e controlar o uso de recursos organizacionais, para alcançar determinados objetivos de maneira eficiente e eficaz”.[2] Administração eclesiástica é a condução das estruturas institucional, orgânica e comunitária da igreja, mediante princípios, normas, funções e procedimentos, com a finalidade de cumprir seus objetivos biblicamente orientados.[3]
A natureza e a esfera da administração
A administração é “espiritual”, “secular” (num aspecto neutro) ou “carnal” (uso pejorativo do termo)? Ao meu ver, a administração situa-se no âmbito das coisas “comuns às ações e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela prudência cristã”, tal como lemos na Confissão de Fé de Westminster (grifos nossos):
Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela. À Escritura nada se acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por tradições dos homens; reconhecemos, entretanto, ser necessária a íntima iluminação do Espírito de Deus para a salvadora compreensão das coisas reveladas na Palavra, e que há algumas circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo da Igreja, comuns às ações e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as regras da Palavra, que sempre devem ser observadas.
Referências Bíblicas: 2Tm 3.15-17; Gl 1.8; 2Ts 2.2; Jo 6.45; 1Co 2.9,10,12; 1Co 11.13,14.[4]
Estas asserções ratificam a crença reformada na suficiência das Escrituras. O texto é cuidadoso em preservar o conceito de suficiência de qualquer reducionismo. A Escritura, ainda que suficiente para todas as áreas da vida, não trata direta e exaustivamente de cada uma delas. Para determinadas questões ela fornece instruções expressas; para outras, torna-se necessária a dedução lógica. Além disso, a CFW afirma que, em determinadas “circunstâncias”, o governo da Igreja exige que se lance mão de ferramentas ou práticas da cultura.
A expressão “luz da natureza” é utilizada na CFW com os sentidos de discernimento natural dos atributos divinos (I.i; XXI.i); consciência que orienta o não-regenerado a conformar-se a um padrão de moralidade (X.iv); razoabilidade que impede alguém de perturbar indevidamente a ordem social (XX.iv) e bom senso que recomenda ao homem separar uma parte de seu tempo para o culto divino (XXI.vii). Todos esses usos encontram aplicação no âmbito da graça comum, sugerindo que algumas “circunstâncias” do exercício do governo eclesiástico demandam uma interconexão da Igreja com a cultura.
Assim como há um princípio regulador para o culto, há um princípio regulador para o governo da Igreja. A decisão sobre quais subsídios da cultura podem e devem ser utilizados na administração eclesiástica é tomada considerando-se a “prudência cristã, segundo as regras da Palavra”. Prudência é a moderação que leva o homem a evitar “tudo o que acredita ser fonte de erro ou de dano”.[5] A Palavra de Deus é a base para a cosmovisão cristã. Ambas constituem uma interface que conecta produtivamente o governo bíblico aos métodos administrativos considerados seculares.
A implicação da CFW é que o erro não se constitui necessariamente na utilização de princípios e métodos da administração na Igreja, mas em sua má utilização. O uso de métodos administrativos oriundos da cultura circundante — aquilo que é comum “às ações e sociedades humanas” — é tanto aprovado quanto sugerido pela CFW, desde que em circunstâncias adequadas, considerando a “luz da natureza”, a “prudência cristã” e as “regras da Palavra.”
O que isso significa, na prática? Simples: Para algumas coisas na vida, preciso orar e lutar nos lugares celestiais. Para outras, preciso administrar sabiamente. Só isso. O controle de meu saldo bancário não é feito lutando contra o “espírito devorador”, mas teclando números em uma calculadora (ou anotando-os em um caderno de despesas), confrontando os resultados das operações e não emitindo cheques maiores do que o saldo verificado. O conserto de um vazamento na pia exige a contratação de um encanador e não uma semana de jejum contra as hostes espirituais aquáticas de uma dimensão invisível. A contratação, promoção ou demissão de um funcionário exigem verificação objetiva de seu perfil para determinada função, e não subjetivação dos problemas práticos, relegando tudo ao terreno místico e “espiritual.”
A CFW ensina que algumas coisas exigem isso mesmo, jejuns, oração e procedimentos ditos “religiosos”. Outras circunstâncias exigem o uso das melhores práticas “comuns às ações e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as regras da Palavra.”
O que é espiritualização da administração
Espiritualização da administração é a mistura de “alhos com bugalhos”. É usar um procedimento religioso para resolver um problema administrativo. Ou vice-versa. Percebo, no entanto, que a primeira forma de equívoco é mais comum.
Vejamos um exemplo recente. Um líder de uma denominação neopentecostal foi flagrado com dólares não-declarados dentro de sua Bíblia, na alfândega norte-americana. Ele e sua esposa foram presos e o caso repercutiu na mídia brasileira. A leitura fornecida por muitos é a seguinte: “Tudo é armação do inimigo. Os servos de Deus estão sofrendo perseguição espiritual”. O problema é moral e legal, mas a igreja que apóia tais líderes insiste que tudo não passa de uma grande conspiração do “coisa-ruim” nas regiões celestiais.
Outro exemplo: Em uma equipe de trabalho, percebe-se que os perfis psicológicos, teológicos e de habilidades dos obreiros, ao invés de otimizar, dificultam a realização das diversas tarefas do ministério. A solução mais razoável é reformatar a equipe: alguém terá de sair para que as dinâmicas relacionais e operacionais se reequilibrem, e o trabalho flua. A liderança pode espiritualizar isso ao ponto de enxergar não a necessidade de uma mudança no quadro de pessoal, mas uma ação satânica (o inimigo semeando discórdia) que ganha terreno devido à “falta de oração.”
A espiritualização da administração manifesta-se de várias formas, como satanização ou redução inadequada dos problemas práticos, que são interpretados como reflexos, na terra, de embates que ocorrem nas regiões celestiais. Uma escola está falindo por má gestão e convoca-se jejum coletivo; uma igreja está fora dos trilhos por decisões ruins de seu conselho e afirma-se que há algum tipo de “entrave espiritual” que precisa ser identificado e desarticulado, a fim de garantir o crescimento.
Em meu mui reduzido contato com igrejas fracas, parece-me que a maior parte dos problemas é simplesmente administrativa; má gerência por parte do pastor ou conselho. Não se trata de maldição por causa da maçonaria na IPB (ainda que eu não seja, nem deseje ser maçom), nem sempre de disciplina divina por causa do pecado (ainda que eu creia que Deus disciplina o pecado também corporativamente). O pastor deixou de cobrar os balancetes do tesoureiro, não havia uma comissão de exame de contas fazendo o seu trabalho; funções estratégicas foram delegadas a pessoas cujos perfis não se encaixam nos papéis; processos administrativos simples foram desvalorizados e deixados de lado. Até o dia em que a bomba explode e então se apega à Providência ou se culpa a Satanás, e “tudo bem”, prossegue-se com a gestão “espiritual” e incompetente.
No episódio da travessia do Mar Vermelho, Moisés orou ao Senhor e recebeu uma resposta aparentemente estranha: “Por que clamas a mim? Dize aos filhos de Israel que marchem. E tu, levanta o teu bordão, estende a mão sobre o mar e divide-o, para que os filhos de Israel passem pelo meio do mar em seco” (Êx 14.15-16). Tal texto revela, sem dúvida, a dependência de Moisés; ele não ousa prosseguir sem a direção de Deus. Ponto para a oração.
Por outro lado, o texto revela também que há momentos para orar e há momentos para agir. Há horas, por mais escandaloso que pareça ao hiper-espirituais, que a oração tem de ser acompanhada de ação: ora et labora. Não basta só orar; é preciso agir. Há uma fraude em andamento, o desonesto deve ser demitido. Determinado imposto não foi recolhido no prazo e está na dívida ativa; alguém tem de ir até o órgão governamental pertinente para negociar o débito. Os custos fixos da Igreja estão exorbitantes, deve ser promovido um enxugamento nos gastos. Se isso não for feito, não se culpe a Deus nem ao inimigo; afirme-se, como na liturgia católica, mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa. O inimigo, nesse caso, é o “espírito de incompetência”, muitas vezes estabelecido a partir das brechas da leniência, mistura — que não deveria haver — entre amizade e exercício da função, corporativismo “gospel” e uma confusão entre graça de Deus e acobertamento de defeitos mortais à vida institucional.
Qual a cura pra isso? Primeiramente, não se trata de “doença” (o que, nesse caso deixa de ser espiritualização e passa a ser psicologização da coisa). Trata-se de assumir, junto com o pastoreio, a administração, compreendendo esta última como dádiva da graça comum para o gerenciamento adequado da igreja. Para as igrejas herdeiras da Reforma, isso é simples, coerente e consistente. Rejeitamos o dualismo da cosmogonia neopentecostal e assumimos a cosmonomia bíblica. Então, abraçamos a esfera econômica, cujo núcleo de significado é a capacidade de gerenciamento, e administramos para a glória de Deus. Simples.
Isso parece “frio”, “asqueroso”, “desumano”, “secular” e “não-espiritual”. Por isso, como eu disse antes, estou pronto para as “tomatadas.”
Notas
1. CHIAVENATO, Idalberto. Introdução à teoria geral da administração: Uma visão abrangente da moderna administração das organizações: Edição compacta. 3. ed. rev. e atualizada. 4ª reimp. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 2.
3. Adaptado de OLIVEIRA, Djalma de Pinha Rebouças de. Administração estratégica na prática: A competitividade para administrar o futuro das empresas. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 4; CARVALHO, Antonio Vieira de. Planejando e administrando as atividades da igreja. São Paulo: Hagnos, 2004, p. 37; KILINSKI, Kenneth K. Organização e liderança na igreja local. São Paulo: Vida Nova, 1987, p. 119.
4. ASSEMBLÉIA DE WESTMINSTER. Símbolos de fé, contendo a Confissão de Fé, Catecismo Maior/Breve. São Paulo: Cultura Cristã, 2005. CFW, I.vi, p. 24-25, grifos nossos. Assumo como pressuposto que a expressão “igreja”, neste ponto da CFW, diz respeito à associação dos cristãos em assembléias locais ou instâncias denominacionais. Isso é depreendido da referência à igreja no contexto das “ações e sociedades humanas.”
5. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Prudência. In: Novo dicionário eletrônico Aurélio versão 5.0. 3. ed. Positivo Informática Ltda., 2005. CD-ROM.
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