A linguagem, a tecnologia e o livro

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Em Gênesis, depois de criar o homem “à sua imagem”, Deus o incumbe do mandato cultural (Gn 1.27-28). Se Gênesis inicia com Deus falando, o homem recebe de seu criador a capacidade de “dominar sintaxe, formar frases complexas e registrar o que pensa”.[1] De acordo com Eduardo Szklarz, o homo sapiens é o único animal capaz disso.[2]Ele faz coro com Linda Davidoff, para quem a linguagem é uma “realização distintamente humana […], o tipo mais sofisticado de comunicação proposital ou intencional”.[3]

A linguagem pode ser definida como um sistema arbitrário de símbolos que, “tomado em conjunto, possibilita […] transmitir e compreender uma variedade […] de mensagens e fazê-lo apesar do barulho e de distração”.[4] O Aurélioexplica linguagem como “todo sistema de signos que serve de meio de comunicação entre indivíduos e pode ser percebido pelos diversos órgãos dos sentidos”,[5] sugerindo acepções adicionais, quais sejam: “(1) o uso da palavra articulada ou escrita como meio de expressão e de comunicação entre pessoas; (2) o vocabulário específico usado numa ciência, numa arte, numa profissão, etc.; língua.[6] Andrés Torres Queiruga nos lembra de que:

Desde o Crátilo de Platão e o Peri Hermeneias de Aristóteles, o problema da linguagem tem sempre ocupado o pensamento. Nos últimos tempos, a partir do que Richard Rorty batizou de “giro linguístico”, este passou para o primeiro plano.[7]

A habilidade para linguagem conduz à língua falada e esta, à escrita e leitura. A proficiência na linguagem (singular), dá azo às metalinguagens, conjuntos de símbolos usados “para descrever uma outra linguagem ou conjunto de símbolos. Exemplos são […] as instruções que acompanham um programa de computador e o uso de símbolos matemáticos para analisar a lógica de um argumento”.[8] O domínio de mais linguagens — um novo idioma, sistema operacional ou padrão de marcação ou programação — torna plausível adições, expansões e aprofundamentos em diferentes conhecimentos, ou seja, tecnologia.

A palavra “tecnologia” é compreendida de diferentes modos, por públicos distintos. Para alguns, o termo evoca cenários de filmes de ficção científica; para outros, pesquisadores em laboratórios avançados, buscando a cura para uma doença degenerativa. Educadores pensam em salas de aulas equipadas com quadros interativos, internet de alta velocidade e alunos munidos de tablets de última geração. Aficionados por carros pensam no que viram no último Salão do Automóvel. Desenvolvedores cogitam sobre interfaces, linguagens e padrões de marcação e programação. Supervisores de equipes, sobre novidades de análises de dados e aplicativos de gestão. Enfim, não sem razão, máquinas, equipamentos e aparatos (eletrônicos, analógicos e digitais) ocupam a mente quando dialogamos sobre tecnologia. Esse leque de ponderações já deveria chamar a atenção para o fato de que existem diferentes atividades técnicas e agentes, cientistas, arquitetos, engenheiros etc., contribuindo com várias tecnologias.[9]

Tecnologia tem relação com a habilidade, technē, “técnica” ou arte; daí, “artífice” ou “artesão”, para produzir um artefato, tal como uma flauta, um arado ou uma vasilha para cozer legumes. Nesses termos, tecnologia é “tratado sobre uma arte”,[10] observando-se que, no contexto deste artigo, arte sempre quer dizer aptidão para produzir artefatos técnicos que “possuem uma dimensão social”.[11] Por essa ótica, tanto um livro quanto um smartphone são tecnológicosenquanto produtos de técnica. De fato, podemos destacar, dentre os artefatos tecnológicos, o objeto livro.

Além do livro resultar do cumprimento do mandato cultural, tanto um escritor, quanto uma editora, operam no âmbito da tecnologia. Ao ser qualificado como “religião do livro”, o protestantismo é, por assim dizer, religião tecnológica. Vamos entender isso melhor nos próximos posts, navegando pela história do livro, até chegar ao livro digital.


[1] SZKLARZ, Eduardo. “Cientistas descobrem o que passa pela cabeça dos animais: golfinhos são sádicos, vacas têm inimigas, gatos e cachorros são experts em dissimulação e galinhas fazem planos para o futuro”. In: SUPERINTERESSANTE. Disponível em: <https://super.abril.com.br/ciencia/cientistas-descobrem-o-que-passa-pela-cabeca-dos-animais/>. Acesso em: 24 nov. 2018.

[2] SZKLARZ, op. cit. loc. cit.

[3] DAVIDOFF, Linda L. Introdução à psicologia. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1983, p. 360, 361.

[4] BROWN, 1965, p. 246, apud BEE, Helen L.; MITCHELL, Sandra K. A pessoa em desenvolvimento. São Paulo: Editora Harbra, 1984, p 199.

[5] “Linguagem”. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário eletrônico Aurélio. Curitiba: Positivo Informática Ltda., 2009. CD-ROM.

[6] FERREIRA, op. cit., loc. cit.

[7] QUEIRUGA, André Torres. Fim do cristianismo pré-moderno: desafios para um novo horizonte. São Paulo: Paulus, 2003 (Coleção temas da atualidade), p. 71.

[8] VANDENBOS, Gary R. (Org.) Dicionário de psicologia da American Psychological Association (APA). Porto Alegre: Artmed, 2010.

[9] VERKERK, Maarten Johannes; HOOGLAND, Jan; VAN DER STOEP, Jan; DE VRIES, Marc. J. Filosofia da tecnologia: uma introdução. Viçosa: Ultimato, 2018, p. 31; HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 280.

[10] “Tecnologia”. In: FERREIRA, op. cit., loc. cit.

[11] VERKERK; HOOGLAND; VAN DER STOEP; DE VRIES, op. cit., p. 35.

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