O valor e os limites da ortodoxia (parte 02)

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No post anterior conceituei ortodoxia e sugeri que é possível identificarmos círculos concêntricos na ortodoxia. Neste post tratarei da ortodoxia dos credos.

2.1. A ortodoxia ampla: O cristianismo dos credos

Logo nos primeiros séculos da era cristã, a igreja precisou organizar as informações bíblicas sobre o ser de Deus. Foram realizadas reuniões – os concílios – com a finalidade de sistematizar a doutrina da Trindade. Surgiram os documentos oficiais referentes ao assunto, denominados símbolos ou credos ecumênicos.

O termo “credo” decorre das palavras iniciais “eu creio”, constantes em tais formulações.

Os credos foram formulados somente depois de certos falsários astutos terem introduzido modos novos de explicar os relacionamentos entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, modos estes que subvertiam a fé bíblica e que impediam as pessoas de realmente conhecerem a Deus. Para deixar claro exatamente como essas negações astutas da doutrina bíblica estavam erradas, era necessário que a igreja definisse de modo formal suas crença nessas coisas.[1]

Há cristãos que desprezam os credos, argumentando que tais elaborações não dizem nada às reais necessidades da igreja contemporânea. Um pesquisador chega ao ponto de afirmar que não temos nenhum compromisso com tais crenças.

Nosso compromisso não é com os conceitos usados na época dos concílios, mas com o que a Bíblia testemunha: o encontro com o próprio Deus. Não temos de crer na doutrina (nicena) da Trindade; antes, devemos empenhar tudo em encontrar integralmente o Deus que se nos revela de modo tríplice.[2]

Esse tipo de discurso parece bíblico e até mesmo espiritual, porém é perigoso. Seremos nós orgulhosos ao ponto de desprezarmos os estudos bíblicos, a sabedoria teológica do passado que é fiel às Escrituras? Mais ainda: Note que a expressão utilizada por Schwarz, “o Deus que se nos revela de modo tríplice[3] nos faz lembrar da heresia modalista. Deus revelando-se “de modo tríplice” não é, de fato, “o que a Bíblia testemunha”; Deus não é uma pessoa que se “revela de modo tríplice”, mas uma Trindade na unidade.[4]

Os reformadores aceitaram as afirmações doutrinárias do Credo Apostólico, do Credo Niceno e do Credo Atanasiano. Para eles tais documentos ajudavam os cristãos na interpretação das verdades bíblicas e possuíam uma autoridade “como a luz da lua comparada à do sol — glória refletida”.[5] Os credos são informação trinitária organizada.

2.1.1. O Credo Apostólico

O credo mais antigo que conhecemos é Credo Apostólico:

Creio em Deus Pai, Todo-poderoso, Criador do Céu e da terra.
Creio em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor, o qual foi concebido por obra do Espírito Santo; nasceu da Virgem Maria; padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado; desceu ao Hades; ressurgiu dos mortos ao terceiro dia; subiu ao Céu; está sentado à mão direita de Deus Pai Todo-poderoso, donde há de vir a julgar os vivos e os mortos.
Creio no Espírito Santo; na santa igreja universal;[6] na comunhão dos santos; na remissão dos pecados; na ressurreição do corpo; na vida eterna. Amém.[7]

2.1.2. O Credo Niceno-Constantinopolitano

Dúvidas e interpretações subsequentes exigiram novas formulações. Um concílio foi realizado em Nicéia (325), encaminhando um novo credo. Alguns anos depois (381), a igreja reuniu-se novamente em Constantinopla, alinhavando detalhes das declarações de Nicéia e afirmando o texto conhecido como Credo Niceno-Constantinopolitano:

Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis.
Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho unigênito de Deus, gerado do Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro; gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Por ele todas as coisas foram feitas. E por nós, homens, e para nossa salvação, desceu dos céus: e se encarnou pelo Espírito Santo, no seio da virgem Maria, e se fez homem. Também por nós foi crucificado sob Pôncio Pilatos; padeceu e foi sepultado. Ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras, e subiu aos céus, onde está sentado à direita do Pai. E de novo há de vir, em sua glória, para julgar os vivos e os mortos; e seu reino não terá fim.
Creio no Espírito Santo, Senhor, que dá a vida, e procede do Pai (e do Filho);[8] e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado: ele que falou pelos Profetas.
Creio na igreja, una, santa, católica e apostólica.
Professo um só batismo para remissão dos pecados. E espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há de vir. Amém.[9]

Observe-se que este credo contém declarações esclarecedoras, não explicitadas no Credo Apostólico:

  • Jesus Cristo é o “Filho unigênito de Deus, gerado do Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro; gerado, não criado, consubstancial ao Pai”. Isso foi incluído para combater as falsas afirmações: (1) que Jesus Cristo não é da mesma substância de Deus; (2) que ele é a mais alta criatura de Deus e, (3) que ele teve um início.
  • O Espírito Santo é “Senhor, que dá a vida, e procede do Pai (e do Filho); e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado: ele que falou pelos Profetas”. Isso foi incluído para combater a falsa afirmação de que o Espírito Santo não é Deus.

2.1.3. O Credo Atanasiano

Ainda que não contenha a expressão “eu creio”, o Credo Atanasiano estabelece um padrão bíblico de crença. Este credo é assim chamado em deferência a Atanásio, bispo de Alexandria (c. 296, † 2 de maio de 373), e refere-se a controvérsias relacionadas à “constituição da pessoa de Cristo”, surgidas depois da época de Atanásio.[10] Apesar da autoria incerta, o documento é uma das obras-primas da teologia dos primeiros séculos, e uma fiel expressão do ensino bíblico sobre a Trindade.

Quem quiser ser salvo, antes de tudo tem de defender a fé católica, a qual, a não ser que alguém preserve íntegra e inviolável, sem dúvida perecerá eternamente.
Mas esta é a fé católica, que adoramos a um só Deus em trindade, e trindade em unidade. Nem confundindo as pessoas nem dividindo a substância. Porque a pessoa do Pai é uma; a do Filho é outra; e a do Espírito Santo, outra. Mas a divindade do Pai e do Filho e do Espírito Santo é uma, igual em glória, igual em majestade.
Assim como é o Pai, assim é o Filho, e assim é o Espírito Santo. O Pai não é criado, o Filho não é criado e o Espírito Santo não é criado. O Pai é infinito, o Filho é infinito e o Espírito Santo é infinito. O Pai é eterno, o Filho é eterno, e o Espírito Santo é eterno. Não há três seres eternos, mas um só Ser eterno. E no entanto, não há três Seres não criado, nem três Seres infinitos, mas um só Ser não criado e infinito. Da mesma forma, o Pai é onipotente, o Filho é onipotente, e o Espírito Santo é onipotente. [Contudo, não há três Seres onipotentes, mas um só Ser onipotente.] Portanto, o Pai é Deus, o Filho é Deus, e o Espírito Santo é Deus. E no entanto não há três Deuses, mas um só Deus. O Pai é Senhor, o Filho é Senhor, e o Espírito Santo é Senhor. Não obstante, não há três Senhores, mas um só Senhor. Porque, como somos impelidos pela verdade cristã a confessar cada pessoa de maneira distinta como Deus e Senhor, somos proibidos pela religião católica de dizer que há três Deuses, ou três Senhores.
O Pai não é feito por ninguém, nem criado, nem gerado. O Filho é somente do Pai, não foi feito nem criado, mas gerado. O Espírito Santo não é criado pelo Pai e pelo Filho, nem gerado, mas procedente. Por isso há um Pai, não três Pais; um Filho, não três Filhos; um Espírito Santo, não três Espíritos Santos. E nesta Trindade nada é anterior nem posterior; nada maior nem menor, mas todas as três pessoas são coeternas e coiguais a si próprias. De maneira que, em tudo, como já se disse anteriormente, deve-se adorar a unidade na trindade e a trindade na unidade. Todo aquele que quiser ser salvo, que assim pense acerca da Trindade.
Entretanto, é necessário para a salvação eterna crer também fielmente na humanidade de nosso Senhor Jesus Cristo. Esta é, portanto, a fé verdadeira: crermos e confessarmos que nosso Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, é Deus e Homem. É Deus da substância do Pai, gerado antes dos tempos, e Homem da substância de sua mãe, nascido no tempo; Deus perfeito e Homem perfeito, subsistindo em alma racional e carne humana.
Igual ao Pai segundo a divindade e menor do que o Pai segundo a sua humanidade. Ainda que é Deus e Homem, nem por isso são dois, mas um único Cristo. Um só, não pela transformação da divindade em humanidade, mas mediante a recepção da humanidade na divindade. É, de fato, um só, não pela fusão das duas substâncias, mas por unidade de pessoa. Pois, assim como corpo e alma racional constituem um único homem, Deus e homem é um único Cristo, o qual padeceu pela nossa salvação, desceu ao inferno, no terceiro dia ressuscitou dos mortos. Subiu ao céu, está sentado à direita de Deus Pai todo-poderoso, donde há de vir a julgar os vivos e os mortos. E quando vier, todos os homens hão de ressuscitar com os seus corpos e dar contas de seus próprios atos, e aqueles que fizeram o bem irão para a vida eterna, mas aqueles que fizeram o mal, para o fogo eterno.
Esta é a verdadeira fé cristã. Aquele que não crer com firmeza e fidelidade, não poderá ser salvo.[11]

2.1.4. A função dos credos

Os credos não foram escritos para substituírem ou sobrepor-se à Bíblia, mas como resumos úteis de sua correta interpretação. Independentemente de suas motivações e contextos históricos, eles descrevem adequadamente os ensinos bíblicos sobre o ser de Deus. A ortodoxia ampla abarca as afirmações destes credos possibilitando delimitar uma “cristandade” a partir da concordância com tais documentos. Um autor cuja obra contrarie qualquer das afirmações dos símbolos ou credos ecumênicos é heterodoxo. Nesse sentido dizemos, e.g., que, quanto ao dogma da Trindade, a Igreja Católica Apostólica Romana é “ortodoxa”, ao passo que as Testemunhas de Jeová são heterodoxas ou heréticas.

Logo mais discorrerei sobre a ortodoxia evangélica.

Notas

1. BOWMAN JR., Robert M. Por Que Devo Crer na Trindade: Uma Resposta às Testemunhas de Jeová. São Paulo: Candeia, 1996, p. 17-18.

2. SCHWARZ, Christian A. Nós Diante da Trindade: O Poder Libertador da Fé no Deus Triúno. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 1999, p. 13.

3. Grifo nosso.

4. O modalismo é a alegação de que há uma só pessoa que aparece a nós de três diferentes modos ou formas. Cf. GRUDEM, Wayne. Manual de Doutrinas Cristãs: Teologia Sistemática ao Alcance de Todos. São Paulo: Editora Vida, 2005, p. 118.

5. OLSON, Roger. História das Controvérsias na Teologia Cristã: 2000 Anos de Unidade e Diversidade. São Paulo: Vida, 2004, p. 77.

6. A palavra “católica”, aqui transliterada para “universal” refere-se não à Igreja Católica Apostólica Romana, mas à igreja invisível, ou seja, à totalidade dos eleitos de Deus.

7. MARRA, Cláudio A. B. (Ed.). Novo Cântico Com Glossário e Novo Formato. 1. ed. Cultura Cristã: São Paulo, 2003, p. 365.

8. A expressão “e do Filho” (filioque) é uma adição encaminhada pelo Sínodo de Toledo, realizado em 589. As Igrejas Orientais não aceitaram a adição e isso foi uma das causas da divisão entre as Igrejas do Oriente e Ocidente. Cf. HODGE, Charles. Teologia Sistemática. São Paulo: Hagnos, 2001, p. 344.

9. OLSON, op. cit., 2001, p. 199-200. Grifos nossos.

10. HODGE, op. cit., loc. cit.

11. HODGE, op. cit., p. 344-345. IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA NO BRASIL (IELB). O Que Cremos: Os Credos Ecumênicos. Porto Alegre: [s.data.]. Disponível em: <http://www.ielb.org.br/cremos/credos.htm>. Acesso em: 10 jul. 2007. Grifos nossos.

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