Os que adiam [atualizado]

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“Começarei a dieta na segunda-feira” — pensava eu com meus botões. Se passaram 15 anos e eu engordei quase 20 quilos.

Protelar coisas importantes é ruim e mais comum do que gostamos de admitir. Eu não posso dizer que não sabia o que tinha de fazer. As duas soluções clássicas para perda de peso — comer menos e fazer exercícios — eram mais do que conhecidas. Apesar disso, eu adiava. “Começarei na segunda”. E nunca começava. O ganho de peso foi sendo percebido pelos familiares e amigos. É duro quando chega a idade; o metabolismo muda; quando éramos jovens perdíamos peso rapidamente, agora não mais; a vida ficou muito corrida; estou cansado. Tudo isso e muito mais era remoído enquanto eu não fazia as duas coisas básicas. Pelo contrário, eu comia mais e não me exercitava.

Surgiram os problemas físicos e psicológicos decorrentes do ganho de peso (dores, baixa autoestima, indisposição e falta de ar). E comecei a orar. Compartilhei do problema com alguns irmãos na fé e eles intercederam por mim. Mas meu problema era consequência de adiamento. Deus graciosamente me deu uma esposa e filhas que chamaram minha atenção e me motivaram a fazer o certo. Deus me deu um plano de saúde que cobre minhas despesas médicas. E Deus regenerou meu coração e converteu-me a ele. Seu Espírito veio morar dentro de mim. Ademais, ele me deu os meios de graça, a oração e a igreja. O que faltava?

Eu só tinha de caminhar 30 minutos diariamente e comer certo. Mas era necessário deixar de dizer que eu faria e começar a fazer, agora.

Deixe eu colocar isso de outro modo.

Imaginemos uma pessoa viciada em pornografia que participa de um culto cristão. Ela certamente não se sentirá confortável diante de Deus. Enquanto a liturgia transcorre, ela luta contra pensamentos impuros. No momento da Ceia do Senhor, o presbítero se aproxima com o pão e o vinho. Então, desesperada, ela ora pedindo que Deus purifique sua mente e toma dos elementos. O culto termina, ela conversa com os irmãos e depois vai pra casa. Naquela noite de domingo, impactada pelo culto, tudo vai bem. A partir da segunda-feira ela retorna à prática pecaminosa. Ela pensa: “A partir de amanhã eu deixarei de ver isso”. Sempre amanhã. Cada vez que peca ela ora. Ela sabe o que deve fazer, mas não faz.

Eu sei que o leitor pode achar a comparação exagerada e impertinente: Do alimento em excesso para a pornografia. A questão é que, na essência, trata-se de necessidade de moderação ou contenção de apetite (em um caso, de comida, em outro, de sexo). Ademais, em ambas as circunstâncias há o problema adicional da preguiça, como explicarei a seguir.

A agenda da santidade

É por causa de situações assim que igrejas investem em programas de aconselhamento e restauração. É por causa disso que proliferam cursos e apostilas de cura interior e quebra de maldições, como a mencionada na introdução deste livro. Eu entendo a motivação destes programas e recursos. No entanto, é preciso descomplicar as coisas, apegando-se à simplicidade — e desfrutando do poder — do evangelho.

O que diz o evangelho? “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” (Jo 8.36). E ainda, “assim como o corpo sem espírito é morto, assim também a fé sem obras é morta” (Tg 2.26). Trocando em miúdos, a santidade deve ser prática e não apenas conceitual.

Vitórias espirituais são precedidas por hábitos santos. Hábitos são precedidos por resoluções. Para uma resolução tornar-se hábito, ela tem de ser item cumprido na agenda (figura 01).

Passos para a vitória espiritual
Figura 01: Resolução, agenda, hábito e vitória

Tal prática dá trabalho e exige disposição. É por isso que eu afirmei, quanto aos dois exemplos acima, que a dificuldade adicional em ambos os casos é a preguiça. Eis o que diz a Escritura:

[quote][4] O preguiçoso deseja e nada tem, mas a alma dos diligentes se farta. [5] O justo aborrece a palavra de mentira, mas o perverso faz vergonha e se desonra. [6] A justiça guarda ao que anda em integridade, mas a malícia subverte ao pecador (Pv 13.4-6).[/quote]

A passagem começa acentuando que o preguiçoso não realiza nada (v. 4). Em seguida menciona a mentira, perversidade e falta de integridade, com suas devidas consequências (v. 5-6). Tudo isso está ligado. A maior parte de nossas derrotas decorre de nossa lassidão. Somos moles porque somos preguiçosos. Preferimos não nos exercitar na piedade (cf. 1Tm 4.7-8; 2Pe 2.9).

A vontade renovada pelo Espírito de Deus escolhe um comportamento. Em seguida, estabelece uma rotina (o item da agenda). A repetição da rotina (fazer o que consta na agenda) constitui o hábito. Tal hábito pode ser angular, ou seja, ele pode motivar mudanças em outras áreas. É o caso da pessoa que assume o hábito de correr. Ao fazer isso, ela deixa de fumar e alimenta-se melhor. Um bom hábito produz uma cadeia de coisas boas.[1] É assim também com as práticas de santidade.

Hábitos, pontos de inflexão e vícios

Hábitos santificados são essenciais quando lidamos com pontos de inflexão.[2] O ponto de inflexão é o momento de estresse que exige o comportamento correto — a hora da tentação. O que fazer nesta hora? Na dependência de Deus, praticar o hábito santo. Nada além disso.

Para Aristóteles, “todo hábito é uma disposição”[3] e um hábito é “uma qualidade dificilmente removível”.[4] Disposição, por sua vez, é “a ordem em algo que tem partes”.[5] Bons hábitos são boas disposições e os possui aquele que é organizado, ou seja, elimina a indisposição, que é a desordem entre as partes.

Hábito é alguma coisa que se tem[6] e, ao mesmo tempo, que se pode abandonar ou perder e está ligado à nossa “inteligência desejante”.[7] Desejo, por sua vez, é sinônimo de concupiscência.

A linha que separa o hábito do vício é tênue. Como nos informa Duhigg:

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A American Society of Addiction Medicine (Sociedade Americana de Medicina de Adição [O termo addiction é melhor traduzido como vício]) define vício como “um distúrbio primário e crônico de recompensa cerebral, motivação, memória e circuitos relacionados […]. O vício é caracterizado por uma debilitação de controle comportamental, anseios, incapacidade de abster-se de forma consistente, e diminuição dos relacionamentos.

Segundo esta definição, observam alguns pesquisadores, é difícil determinar por que gastar cinquenta dólares por semana em cocaína é ruim, mas gastar cinquenta dólares por semana em café não é um problema. Alguém que anseia por um cappuccino toda tarde pode parecer clinicamente viciado para um observador que considere que pagar cinco dólares por um café demonstra uma “debilitação do controle comportamental”. Uma pessoa que prefere correr a tomar café da manhã com os filhos é viciada em exercícios?

Em geral, dizem muitos pesquisadores, enquanto o vício é complicado e ainda mal compreendido, diversos dos comportamentos que associamos a ele muitas vezes são impulsionados por hábitos. Algumas substâncias, tais como drogas, cigarros ou álcool, podem causar dependência física. Mas esses anseios físicos muitas vezes podem desaparecer rapidamente depois que o uso é interrompido. Um vício físico em nicotina, por exemplo, dura apenas enquanto a substância química está na corrente sanguínea do fumante — cerca de cem horas depois do último cigarro.[8]
[/quote]

É interessante que tenha sido demonstrado em estudos clínicos “que atacar os comportamentos que consideramos vícios modificando os hábitos relacionados a eles é um dos métodos de tratamento mais eficazes”.[9]

Pecado não é doença

Vício é dependência.[10] Uma vez que qualquer vício é, em última análise, a “espera” ou “busca de auxílio”, “segurança” ou “proteção” em outras coisas fora de Deus,[11] todo vício é pecado que deve e, pela aplicação da graça redentora, pode ser abandonado.

Um entrave ao estabelecimento de hábitos santos é a apropriação da ideia do pecado como doença. Se o pecado é doença, nós não precisamos abandoná-lo. O que necessitamos, de fato, é sermos curados. Ao lidar com o pecado como doença, nós o esvaziamos de qualquer significado moral. Uma pessoa não pode ser culpada por adoecer.

A identificação do pecado com a enfermidade tem razão de ser. A Bíblia às vezes estabelece tal ligação (Is 53.4-5). No AT, os detalhes relacionados à lepra — a declaração de impureza que separava o leproso do culto, seguida de necessidade de purificação ritual — têm aplicação tanto sanitária quanto espiritual, sugerindo a alienação produzida pelo pecado (Lv 13.1—14.57; cf. Nm 12.1-16). Ao referir-se à sua aproximação dos pecadores, o Senhor Jesus Cristo ensinou que “os sãos não precisam de médico, e sim os doentes” (Mt 9.12). Em outro lugar, ele sugere que ser convertido equivale a ser curado (Mt 13.15).

Esta analogia, porém, tem uma limitação. Biblicamente, a questão do pecado foi resolvida. Isso não significa que podemos ser absolutamente santos nesta vida; nós só seremos plenamente libertos do pecado na glorificação. No entanto, desde o momento em que somos regenerados e cremos em Cristo, Deus nos dá o suficiente para sermos “sal da terra” e “luz do mundo”. Ele não diz “vós sereis”, e sim, “vós sois o sal da terra” e “luz do mundo” (Mt 5.13, 14). Uma realidade presente, instalada em virtude da chegada do reino. Isso é assim para que as pessoas vejam nossas “boas obras” e glorifiquem a Deus (Mt 5.16).

Em outro lugar, lemos que Jesus “se deu por nós, a fim de remir-nos de toda iniquidade e purificar, para si mesmo, um povo exclusivamente seu, zeloso de boas obras” (Tt 2.14). Isso indica que alguma coisa pode constatada em nossa vida hoje; as pessoas podem ver uma mudança ao ponto de exclamar: “Olha só o que aconteceu na vida do João (ou do José ou Maria)!”

A vinda do Senhor foi acompanhada por profusão de curas, cumprindo profecias do AT (cf. Is 61.1-2; Lc 4.18-21; 7.20-23). Ao realizá-las, Jesus demonstrou ser o Messias prometido. Ao curar os corpos das pessoas, ele revelou ser aquele que cura a alma ao mesmo tempo em que abençoa ao corpo — bênção que será plenamente efetivada na ressurreição (Jo 6.39).

Repetindo o que foi dito antes, a mensagem do Redentor é clara. Ele nos torna livres (Jo 8.36). Estamos nele; fomos incluídos na liberdade concedida por ele; por meio dele nós recebemos o Espírito Santo e “onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” (2Co 3.17). Dito de outro modo, ainda que os crentes em Cristo não sejam nesta vida cem por cento santos, eles já são verdadeiramente livres. Daí as palavras apostólicas:

[quote]Não vos sobreveio tentação que não fosse humana; mas Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados além das vossas forças; pelo contrário, juntamente com a tentação, vos proverá livramento, de sorte que a possais suportar (1Co 10.13).[/quote]

De acordo com a Bíblia, é possível desejar segundo Deus ou contra ele (Gn 3.6; 4.7; Sl 37.4-5). Os que são de Deus aprendem, pelo Espírito, a submeter-se à sua vontade, o que implica em renegar os maus hábitos e adquirir os bons (Is 1.16-17; Mt 6.9-10; 26.39). O Senhor dispõe — limpa e reorganiza — o coração dos eleitos para a prática do bem (Jr 31.33; Tt 2.12; 1Pe 1.2). Por isso dizemos não aos desejos da carne e dos olhos, bem como ao orgulho natural (1Jo 2.16), negamos a nós mesmos e encontramos, unicamente no Redentor, significado, afirmação e plena liberdade (Lc 9.23; 1Co 1.30-31; Gl 5.16-17). Afirmamos que hábitos podem e devem, pelo Espírito Santo, ser santificados. Eis uma das belíssimas facetas do evangelho.

Sendo assim, na hora da tentação, não compliquemos as coisas. Primeiro, entendamos que temos de dizer “não” ao pecado — que a vitória sobre a tentação não tem a ver com necessidade de cura, e sim de obediência. É a hora de dizer: “Não desobedecerei ao meu Deus” (Gn 39.9; Mt 4.10).

Segundo, peçamos a ajuda de Deus certos de que, em Cristo e no poder do Espírito, nós temos tudo o que é necessário para sermos santos. Nós pecamos quando desconsideramos as implicações e recursos do evangelho.

Terceiro, fujamos da fonte ou contexto do pecado. Depois que fizermos isso, por mais intenso que seja, o desejo de pecar passa.

Toda complicação em torno disso não passa de maquinação do inimigo para confundir os santos, fazendo-os enxergar-se como doentes e incapazes de assumir hábitos santos. O Diabo é o mestre da ilusão. Como um mágico que surge e desaparece do palco em meio a uma cortina de fumaça, ele nos embaraça até o ponto de considerarmos a questão complicada demais. Nossos traumas emocionais ou psicológicos são muito profundos. Somos problemáticos. A vida livre em Cristo é para os outros, não para nós.

Um cristão que maltrata sua esposa pode alegar que possui problemas sérios, uma vez que foi criado em um lar disfuncional. É possível que um terapeuta recomende que, para tratar melhor sua esposa, aquele homem precisa, primeiramente, entender como seu pai tratava sua mãe e seu avô tratava sua avó. Somente depois de processar isso em profundidade (o que pode levar meses ou anos), e isso sob supervisão profissional altamente qualificada, é que ele terá condições de melhorar o modo como lida com o estresse e a vida conjugal.

Não há dúvida de que somos afetados por nossos pais (Êx 20.5-6; 2Rs 21.19-22). De acordo com a Bíblia, porém, tal influência não é determinante. Filhos de pais ímpios podem ser piedosos (2Rs 21.16—22.2). O que faz diferença é ser alcançado pela graça salvadora de Deus. Trocando em miúdos, independentemente de como eu tenha sido tratado por meus pais, Deus me ordena a amar minha esposa como Cristo ama a igreja (Ef 5.25). Ele não apenas requer isso, mas me capacita espiritualmente para tal (Gl 5.22-25). Diante do “Tribunal de Cristo”, eu serei cobrado por isso (2Co 5.10). Se eu não tratar bem minha esposa, Deus não me considerará doente, e sim, desobediente.

Outros entendem que, para obedecer a Deus, precisam da aplicação de uma técnica espiritual sofisticada, quem sabe escrever uma lista de seus pecados e queimá-la em uma fogueira em Israel, ou orar no monte Moriá, ou, ainda, receber a unção com óleo de peixe do Mar da Galileia. Ou entendem que não há solução. Continuam deprimidos no sofá, empanturrando-se de sorvete e pipoca. Continuam mentindo e traindo, rolando no mau-cheiro de suas próprias perversidades. E culpam o inimigo. Ou a vida que foi dura demais. Ou seus pais. Ou a igreja que não lhes dá assistência. E quando ouvem, lá no fundo, aquela voz dizendo “comece a dieta”, pensam, em resposta, “amanhã”.

[Trecho do livro Luta Espiritual: O Que a Bíblia Realmente Ensina. Em fase de revisão para publicação.]


[1] DUHIGG, Charles. O Poder do Hábito: Por Que Fazemos o Que Fazemos na Vida e nos Negócios. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 9-13.
[2] DUHIGG, op. cit., p. 161.
[3] ARISTÓTELES, Predicamentos 9, a, 10, apud AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2005. v. 4, 49, 1, p. 37.
[4] Op. cit., 9, a, 3; 10-13, p. 38.
[5] ARISTÓTELES, Metafísica C. 19: 1022, b, 1, apud AQUINO, op. cit., loc. cit.
[6] O termo latino habitus é ligado a habere: ter. Cf. PLÉ, Albert. Os Hábitos e as Virtudes. In: AQUINO, op. cit., p. 35.
[7] Ibid., loc. cit.
[8] Op. cit., p. 86. Grifo nosso.
[9] Ibid., loc. cit. Grifo nosso.
[10] VANDERBOS, Gary R. (Org.). Dicionário de Psicologia American Psychological Association (APA). Porto Alegre: Artmed, 2010, p. 264-266, 1015-1016.
[11] VANDERBOS, Dependência. In: Op. cit., p. 264.

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