Apostila em PDF (1.3 MB)
Ximenes não compreendia a razão que levava seu amigo Roberval a crer na doutrina da ascensão de Maria. Ele procurara no Novo Testamento uma menção a esse assunto, mas não encontrou. Roberval, um católico-romano bem
informado, explicou a Ximenes que a doutrina não se encontrava na Bíblia. A Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR), promulgou tal ensino a partir de sua “Sagrada Tradição”.[1]
Neste estudo você compreenderá que há uma relação entre profecia e revelação e conhecerá os ensinos da ICAR, de algumas igrejas evangélicas e de algumas igrejas reformadas, sobre essa questão.
1. Os profetas eram canais da revelação divina
Profecia é uma revelação dada pelo Espírito Santo. “Profeta”
(prophētēs) é a pessoa escolhida por Deus como canal dessa revelação.[2]
Porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens [santos] falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo (2Pe 1.21).
29 Tratando-se de profetas, falem apenas dois ou três, e os outros julguem. 30 Se, porém, vier revelação a outrem que esteja assentado, cale-se o primeiro (1Co 14.29-30).
No conceito acima, observe que a profecia é intimamente ligada à revelação. Paulo demonstra isso na passagem bíblica a seguir:
Agora, porém, irmãos, se eu for ter convosco falando em outras línguas, em que vos aproveitarei, se vos não falar por meio de revelação, ou de ciência, ou de profecia, ou de doutrina? (1Co 14.6).
O texto em questão contém aquilo que os estudiosos bíblicos chamam de quiasmo.[3] Biblicamente o serviço de doutrinação relaciona-se com a “ciência” e o ofício profético com a revelação (tabela 01).
Revelação |
Ciência |
|
---|---|---|
↓ |
↓ |
|
Profecia |
Doutrina |
Tabela 01. Relações entre revelação e profecia e entre ciência e doutrina.
A profecia é uma forma especial do Espírito concedida à igreja e operante dentro dela. Por esse motivo, o discurso dos profetas também pode ser chamado de revelação.[4]
A revelação era recebida pelo profeta de diversas maneiras, destacando-se as visões e os sonhos. Por essa razão, na língua hebraica, nābî’ ou “profeta”, é sinônimo de rō’eh, “vidente”.[5]
Em suma, a profecia na Bíblia é sempre concedida para transmitir uma revelação. E o conceito de revelação tem relação com o “mistério” do NT. De modo geral, revelação pode ser entendida de duas maneiras:
- Revelação é, simplesmente, Palavra de Deus. Receber uma revelação equivale a receber uma palavra divina digna de confiança.
- Revelação é, ainda, palavra de salvação, ou seja, evangelho.
O termo apokalypsis, traduzido como “revelação” tem o sentido amplo de “palavra normativa de Deus”. No âmbito da doutrina da salvação, a palavra vem ligada a “mistério” (mystērion) e significa o ensino apostólico sobre Jesus Cristo (Ef 3.3-4).
Um estudioso coloca essa questão desta forma:
O alvo principal da “revelação” não é a perpétua experiência da revelação propriamente dita. A revelação, na verdade, é um meio para um fim. É o método pelo qual Deus se faz conhecer aos pecadores que vivem sem esperança, perdidos e separados de seu Filho, o Senhor Jesus Cristo.[6]
2. A doutrina da revelação na ICAR
Deus continua fornecendo novas revelações? Vejamos como a ICAR responde a essa pergunta. No que diz respeito aos interesses desse estudo, a doutrina da revelação do Catolicismo Romano pode ser resumida em três pontos: Suficiência bíblica aparente; sucessão apostólica mais tradição e continuidade da revelação sob a assistência do Espírito Santo. Tais formulações constam no Dei Verbum (DV), o documento oficial da ICAR sobre a revelação divina.[7]
2.1. A ICAR é firmada no ensino transmitido pelos apóstolos
O documento oficial da ICAR assume que esta é suprida pelo “que foi transmitido pelos apóstolos:”
Aquilo que foi transmitido pelos apóstolos, abrange tudo quanto coopera para a vida santa do Povo de Deus e para o aumento da fé, e assim a Igreja, na sua doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo aquilo que ela é, tudo aquilo que ela acredita.[8]
Pelo texto acima, aprendemos que esse conteúdo “apostólico” é suficiente para atender a todas as necessidades da igreja. Um leitor desavisado pode entender que esta cláusula do DV se refere à Bíblia, mas esse não é o caso. A ICAR vai muito além das Escrituras. Para entendermos isso temos de olhar para o segundo ponto.
2.2. A ICAR, a sucessão apostólica e as novas revelações
Para a ICAR, há sucessores atuais dos apóstolos do NT:
Porém, para que o evangelho fosse perenemente conservado íntegro e vivo na igreja, os apóstolos, deixaram os bispos como seus sucessores, “entregando-lhes o seu próprio lugar de magistério”. Portanto, a Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura dos dois Testamentos são como um espelho no qual a igreja, peregrina na terra, contempla a Deus, de quem tudo recebe até ser conduzida a vê-lo face a face tal qual ele é.[9]
Neste trecho do DV destacam-se duas ideias. Primeiro, a de sucessão apostólica: Os bispos da ICAR são sucessores dos Doze e Paulo. Isso significa que, para a ICAR, ainda que os apóstolos do NT sejam considerados únicos, o dom apostólico vigora até hoje e é ministrado através dos bispos da igreja.
Segundo, a autoridade para a ICAR é dupla, Sagrada Tradição mais Sagrada Escritura. A Sagrada Tradição é acumulada através de novas revelações, como segue:
Esta tradição apostólica progride na igreja sob a assistência do Espírito Santo. Com efeito, progride a percepção tanto das coisas como das palavras transmitidas, quer mercê da reflexão e do estudo dos crentes, que a meditam no seu coração (cf. Lc 2,19.51), quer mercê da íntima inteligência que experimentam das coisas espirituais, quer mercê da pregação daqueles que, com a sucessão do episcopado, receberam um carisma seguro de verdade. Isto é, a igreja, no decorrer dos séculos, caminha continuamente para a plenitude da verdade divina, até que nela se realizem as palavras de Deus.[10]
Para a ICAR, o Espírito Santo continua dando revelação. A igreja “progride” na obtenção dessa verdade sob o ministério daqueles que sucedem aos apóstolos e possuem o “carisma [dom] seguro da verdade”. Tal entendimento sobre a continuidade da revelação é representado na figura 01. O esquema apresenta a história antes da primeira vinda de Jesus Cristo — criação, queda, promessas iniciais da redenção — e realização messiânica da redenção — encarnação, morte, ressurreição e exaltação do Senhor.
Figura 01. A doutrina da revelação na ICAR: Sucessão apostólica e novas revelações.
O serviço dos apóstolos e profetas foi apenas introdutório, a revelação que eles trouxeram foi parcial; por isso a Igreja não possui a plenitude de verdade. A seta da revelação corre do AT ao NT e continua. Nos dias atuais é necessária uma atualização do evangelho pela tradição, na sucessão apostólica. Isso equivale a dizer que depois do fechamento do cânon (AT e NT), o Espírito Santo fornece novas revelações à igreja. O ensino da ICAR sobre revelação pode ser assim resumido: A Escritura mais…
3. Evangélicos que creem em novas revelações
Ansiosa para saber a vontade de Deus para sua vida, a jovem recém-convertida decidiu buscar as orientações de um “profeta” recomendado por sua colega de trabalho.
Depois de “ungir” a jovem com óleo o irmão proferiu uma “profecia”: Em breve ela perderia seu emprego, passaria por muitas necessidades, mas Deus estaria com ela em todos os momentos. A jovem ficou assustada e ansiosa. O que fazer? Será que ela havia, de fato, ouvido uma nova revelação de Deus?
Ao procurar o pastor de sua igreja, este lhe mostrou o ensino da Bíblia acerca da profecia. Ela aprendeu que o melhor meio para encontrar orientação divina é lendo e estudando pessoalmente a Escritura, com oração.
Há evangélicos que acreditam na contemporaneidade da revelação. Dizem que o Espírito continua fornecendo revelações através do dom de profecia ou de um pacote de outros dons tais como línguas e palavras de sabedoria ou conhecimento.[11]
A base doutrinária para esta crença é extensa e diversa.[12] O fato dos autores que acreditam em novas revelações não concordarem em todos os pontos da doutrina da revelação, torna difícil uma sistematização de seu ensino. Dois pontos, no entanto, são compartilhados:
- Afirma-se que o dom de profecia e o ofício de profecia são para hoje.
- Assim sendo, é necessário exercitar a profecia sob a regra da Escritura.
Crê-se na atualidade do exercício do dom de profecia e, por conseguinte, do ofício profético.[13] Um estudioso sugere que o Espírito continua fornecendo revelação complementar às Escrituras, nesses termos:
As Escrituras são o cânon da verdade, porém, o Espírito Santo revela, tanto individual quanto corporativamente, seu desejo em situações específicas que vão além do que uma pessoa possa legitimamente interpretar em qualquer passagem bíblica.[14]
A Bíblia Plenitude sugere a contemporaneidade do dom de profecia e do ofício profético destacando que a Escritura deve ser considerada como autoridade maior:
Nenhuma profecia ou experiência detém uma autoridade maior que a Palavra de Deus.
[…]
O ofício de um profeta é para a edificação do corpo: para aumentar e dar vida ao corpo, seja local ou distante.[15]
Em uma nota explicativa, a mesma Bíblia de estudo sugere que o cargo dos apóstolos “junto com o dos profetas , é um ministério contínuo na Igreja”.[16]
Na defesa de tal ponto de vista são utilizadas diversas passagens da Bíblia. Os textos de Romanos 12.6 e 1Coríntios 12.10,28; 14.3-5,26,29-32,39 e Efésios 4.11 são citados afirmando-se que, uma vez que o dom de profecia e o ofício de profeta existiam nos tempos do Novo Testamento (NT), devem existir hoje. Há ainda quem cite 1Tessalonicenses 5.19-20, afirmando que a igreja “apaga” o Espírito, caso não dê abertura para as profecias contemporâneas.
Tal entendimento é representado na figura 02. De acordo com esse ponto de vista, o serviço dos apóstolos e profetas da Bíblia fornece um paradigma ou modelo que deve ser repetido. O evangelho é atualizado pela experiência carismática. A igreja recebe revelações hoje por meio de um ministério profético falível. Tal ensino pode ser resumido como a Escritura mais…
Figura 02. A doutrina da revelação para os evangélicos que acreditam em novas revelações.
Há um paralelo entre os católicos da ICAR e os evangélicos que creem em novas revelações. Historicamente, católicos romanos e evangélicos estão separados por diversas crenças e práticas. Neste estudo não sugerimos que ambos os grupos devam ser igualados, mas afirmamos que, ainda que a ICAR e os evangélicos difiram no que tange à doutrina da salvação, assemelham-se quanto à doutrina da revelação, pois abraçam a ideia de Escrituras mais alguma coisa (tabela 02)
Membros da ICAR |
Evangélicos abertos a novas revelações |
Separados |
|
Semelhantes |
Tabela 02. A ICAR e os evangélicos abertos às novas revelações.
Na ICAR, a doutrina se desdobra nessa ordem: Contemporaneidade do apostolado resulta em contemporaneidade da revelação. A sucessão apostólica abre espaço para o paradigma Escrituras mais…
Entre os evangélicos abertos a novas revelações a doutrina se desdobra assim: Contemporaneidade da revelação resulta em contemporaneidade do profetismo — há profetas hoje, ainda que diferentes daqueles do Antigo Testamento (AT) e Novo Testamento (NT). A atualização do dom e ofício profético abre espaço para o paradigma Escrituras mais… Em ambos os casos a Bíblia é, ao mesmo tempo, valorizada e insuficiente.
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