Manhã de terça-feira. O dia começa com carga de trabalho redobrada. Acordar. Tomar banho. Buscar a Deus lendo as Escrituras e orando. Passear com o Bento. Tomar café da manhã. Assistir a noticiário na TV e, em seguida, ler as manchetes e partes que me interessam no site da Prefeitura, em um jornal municipal e outros dois, de alcance nacional. Iniciar atividades pastorais: acertar detalhes referentes aos cultos do próximo domingo; começar a esboçar consulta ao Conselho sobre funcionamento da secretaria da igreja durante o lockdown no município; primeiro aconselhamento por telefone; dois aconselhamentos por WhatsApp; atualizar plug-in no site da igreja, iniciar planejamento de liturgias para o próximo Boletim. Fazer isso orando todo o tempo, pedindo que Deus conceda graça aos doentes e enlutados, socorro aos casais e famílias em crise, emprego aos que carecem de sustento, libertação aos tentados e serenidade a todos os que temem. Olho para o relógio e são apenas 11h20.
Chego a este ponto do dia ainda crente em nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo apesar de ter lido, além da Bíblia, os jornais de hoje. Minha esperança permanece firme em Deus, mesmo depois de assistir notícias na TV. Não as busquei no Facebook, YouTube, Twitter, Instagram ou WhatsApp. Consultei jornais e sites produzidos por empresas estabelecidas há mais de século, conhecidas por seu jornalismo profissional.
Dizer que a mídia é tendenciosa é “chover no molhado”. O jornalismo é atividade humana, conspurcada pela queda relatada em Gênesis 3. Quando repassa uma informação, nenhum ser humano é absolutamente imparcial e desapaixonado. Nada neste mundo é comunicado ou noticiado de forma absolutamente isenta. A mídia, como “meio” usado para transmitir um recado ou mensagem, nunca foi neutra. Desde o séc. 19, a maior parte daquilo que chega até nós como relato jornalístico passa pelo crivo redacional de poucas agências de notícias. E pelo menos onde prevalece o Estado de Direito que assegura uma imprensa livre, um mesmo fato sempre é comunicado pelos ângulos da situação e da oposição. Isso quer dizer que as reportagens das últimas décadas que nossos avós e pais leram, ouviram ou viram em jornais, revistas, rádio, TV e outros meios, foram todas revisadas e editadas, antes de serem publicadas.
Aos atos de escrita, produção e publicação, correspondem os de acesso/recepção e leitura/processamento de conteúdos. Em qualquer tempo da história, ler/acolher informação sempre exigiu pensamento/senso crítico, ou, utilizando um vocábulo da Escritura, diakrisis, “discernimento”, a “habilidade de fazer julgamentos”. Estar informado demanda sujeitar-se a sair em campo, cotejando narrativas.
É um tema para pesquisa, se o Cristianismo da Reforma foi ou é contrário às mídias. Meu entendimento, até agora, é que, pelo contrário, a Reforma fez bom uso delas. Parece que uma das mídias mais visualizadas em Wittenberg era a porta da capela do castelo, onde eram fixados convites para debates sobre religião. Mas nada se compara à prensa de tipos móveis de Johannes Gutenberg. A invenção serviu a causas anticristãs, mas também tornou possível distribuir, em escala maior, as doutrinas e ideais da Reforma.
A História informa sobre tempos de transição, nos quais as gerações são forçadas como dobradiças, em um movimento que abre a portas para outro locus, sobre o qual pouco ou nada se conhece. Nos livros Renascimento e Gente Impossível, o irmão Os Guinness propõe que presenciamos um momentum que converge para um tipo distinto de sociedade, desprovida da alma judaico-cristã. A esperança para este tempo é uma Igreja esclarecida, devota e evangelizadora. O esclarecimento precede a devoção, para que a Igreja saiba qual luta espiritual e cultural deve combater e pelo que deve orar. E também precede a evangelização, pois é preciso compartilhar o evangelho de modo sensível ao contexto. Guinness sugere que a Igreja atual fale sobre a fé cristã com sabedoria e humildade (aqui indico Conversa de Tolos, outro excelente livro dele, sobre evangelização). Tais encaminhamentos exigem mais esclarecimento, não menos, mas os cristãos não obterão mais esclarecimento boicotando as mídias profissionais.
Me parece compreensível, mas não consistente com a fé da Reforma, pastores recomendarem aos seus ouvintes que não leiam jornais e revistas, nem assistam a determinados canais de TV. Compreensível porque há razões para inseguranças e indignação, algumas proposições anticristãs intimidam e são desrespeitosas, e a soma das notícias diárias é por demais triste e desoladora. Líderes cristãos são mensageiros de boas notícias (o evangelho), estão atentos às aflições de seus rebanhos e querem, com toda honestidade e boa vontade, animar as igrejas para os embates cotidianos e cumprimento da missão.
O risco é da igreja ser conduzida a confundir fé bíblica com obscurantismo, a se entrincheirar e encasular, a demonstrar inaptidão para o debate público esclarecido e respeitoso e, pior, a contribuir para transformar a praça deste debate em zona de guerra. Dentro de suas próprias fileiras, as igrejas são tentadas a considerar, como mais espirituais, as pessoas que vivem e operam na realidade paralela do mundo evangélico, consumindo conteúdos de emissoras de TV “evangélicas”, informando-se por redes sociais (Facebook, Twitter, Instagram, YouTube, etc.) alimentadas por produtores de conteúdos ou apenas alinhadas a pontos de vista pretensamente “cristãos”. No fim do processo, a Igreja pode não ser mais capaz de compreender o diferente, nem dialogar com o diferente e, mais grave, a amar ao diferente na prática do exercício de sua cidadania e testemunho neste mundo.
Deus nos abençoou com dois olhos. Ao fechar deliberadamente um deles, perdemos amplitude de visão. Ao insistir que os cristãos serão mais abençoados deixando de acessar noticiários produzidos pelo jornalismo profissional, induzimos os crentes a olhar para a vida com um olho só.
É claro que, em intervalos devidos, nós precisamos fechar os dois olhos. Para manter a saúde, todo ser humano precisa dormir. Uma boa noite de sono alivia e organiza a mente e restaura as forças do corpo. Semelhantemente, precisamos de “pausas” em nosso consumo de informação. Dias em que nossa mente não seja sobrecarregada com os inputs do jornalismo profissional. Deus providenciou isso ao instituir o descanso sabático, um dia, dentre sete, para que sejamos aliviados das sobrecargas todas e nos deleitemos no Senhor e em suas dádivas, especialmente nos dedicando aos cultos públicos, à escola dominical e ao convívio em família.
Iniciada a semana, porém, não há erro em ler as Escrituras e, também aos jornais. Entendendo que estes, sempre deverão ser discernidos a partir daquelas.
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