Em artigo publicado na Folha em 11/10/2010 (A12), Vladimir Safatle registra sua preocupação com a morte da República Federativa do Brasil. Uma República Fundamentalista Cristã, estabelecida em 31 de outubro de 2010, traria, como novidade institucional, “um poder moderador, pairando acima dos outros Três Poderes e composto pela ala conservadora do catolicismo em aliança com certos setores protestantes”. Após uma rápida análise de fatos recentes da disputa presidencial, conclui-se com um certo pesar pela derrocada da “república laica onde os dogmas religiosos não seriam balizas da vida social […] onde seria possível dar a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”.
O artigo citado alinha-se a outros publicados em diversas mídias, todos com o mesmo viés: o intrometimento da religião nos assuntos civis não é pertinente. Os eleitores acertam quando deixam de votar em Dilma Rousseff por causa da ameaça à liberdade de imprensa, dos escândalos de quebra de sigilo fiscal dos tucanos e do caso Erenice (isso revela maturidade eleitoral). No entanto, rejeitá-la por questões de consciência religiosa é obscurantismo e retrocesso. A laicidade do Estado corresponde à ausência de influência da religião na vida pública.
Isso equivale a dizer que os religiosos podem pagar impostos, mas não podem emitir opinião sobre suas convicções políticas. Se o fizerem, devem efetuar um corte entre suas crenças e as ideias verdadeiramente úteis à ordem social.
O que se esquece é que a religião cristã não se restringe ao que normalmente denominamos vida privada. O cristianismo propõe uma cosmovisão – uma visão de mundo coram Deo (diante de Deus). Exigir do cristão que trate de política desconsiderando os dados proveniente de sua fé é demonstrar desconhecimento das próprias bases do cristianismo.
Não se exige aqui um retorno ao realismo da Idade Média – uma igreja que se coloca no centro de todas as coisas e que domina não apenas a política, mas também as artes e todas as outras instâncias civis. O que se propõe é uma República Federativa do Brasil que funcione como tal, nos termos do Artigo 3º de sua Constituição. Isso implica na liberdade de expressão de todos os grupos que compõem a sociedade.
Grupos sociais possuem pautas políticas e a democracia deve fornecer espaço para o embate de proposições ainda que díspares. Em um regime republicano e democrático feministas podem pronunciar-se em favor do aborto e religiosos podem pronunciar-se contra. Favoráveis ao casamento gay podem apoiar políticos que defendam a referida bandeira e religiosos – sim, por questões de convicção religiosa – podem utilizar os instrumentos republicanos legítimos para fazer frente a tal proposição.
Constata-se que convicções religiosas influenciaram as votações de primeiro turno. Isso não significa um retrocesso democrático e sim um avanço. Safatle se engana ao pensar na possibilidade de uma “aliança” entre uma “ala conservadora do catolicismo” com “certos setores protestantes”. Pra começar, não existe sequer uma “voz protestante” no Brasil – ninguém está autorizado a falar em nome de todos os evangélicos. O que existe, certamente, é a necessidade dos políticos atentarem para nós, religiosos, que não somos obscurantistas nem tolos, mas cidadãos dos céus e bons cidadãos do Brasil.
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