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O Leão, a feiticeira e o guarda-roupa: Limitações da arte e ciência na evangelização e doutrinação evangélica [atualizado]

Desde dezembro de 2005, os brasileiros podem mergulhar no universo gelado de O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, filme produzido pelos Estúdios Disney e Walden Media e dirigido por Andrew Adamsom. A película é baseada no livro de mesmo nome escrito por Clive Staples Lewis, autor irlandês reconhecido como um importante apologista cristão.

O enredo é simples: Durante a Segunda Guerra Mundial, Pedro, Susana, Edmundo e Lúcia vão morar na casa de um professor, longe de Londres, a fim de fugir dos bombardeios. Na casa encontram um guarda-roupa que dá acesso ao mundo de Nárnia, uma terra gelada dominada por Jadis, a Feiticeira Branca.

A chegada dos meninos em Nárnia confirma uma profecia. Dois filhos de Adão e duas filhas de Eva apareceriam e, ajudados pelo leão Aslan, colocariam fim ao governo da Feiticeira e seriam entronizados como reis, em Cair Paravel.

De certo modo, o restante da história relata o cumprimento da profecia e chega ao seu ponto alto com a morte e ressurreição de Aslan e com a batalha entre os exércitos deste e da Feiticeira, que é morta pelo poderoso Leão Redivivo. Os quatro irmãos são coroados reis e governam por vários anos, até que, em uma caçada, redescobrem a passagem de volta ao nosso mundo. Atravessando-a, retornam ao momento em que tinham entrado no guarda-roupa.

Avaliação

O filme incomoda a alguns cristãos evangélicos pelo uso excessivo de personagens extraídos da mitologia. Em suas Crônicas de Nárnia, C. S. Lewis coloca ao lado de seres humanos faunos, centauros, ninfas, cavalos alados, ogros, sereias, animais falantes e diversas outras criaturas. Uma rápida pesquisa sobre cada um desses seres fantásticos — aqui uso a expressão como significando simplesmente, “extraídos do mundo da fantasia” — revelará, além de origens absolutamente pagãs, ligação com instintos baixos e grotescos. Na mitologia grega o fauno, por exemplo, é uma espécie de músico que anima os bacanais, as festas de Dionísio ou Baco e destaca-se por seus hábitos de manter relações sexuais com as ninfas, espíritos femininos da Natureza. Lewis altera o caráter de tais seres mitológicos e os coloca sob a égide do Leão. Todos estes submetem-se, espontaneamente ou não, à supremacia de Aslan.

Na verdade, Lewis é prodigioso em ajuntar personagens extraídos do paganismo ou crendice popular. Em determinado ponto da fábula, as crianças são auxiliadas nada menos do que por Papai Noel. Uma comparação de sua obra com O Senhor dos Anéis, de J. R. Tolkien, leva inevitavelmente à conclusão: Ambos escrevem sagas utilizando o imenso acervo mitológico existente na cultura humana. Lewis concede a estes personagens traços distintos de seus usos primitivos.

Outro detalhe a considerar é o estranho fato de Aslan entregar-se para morrer nas mãos da Feiticeira. O problema não é a morte em si, mas o fato de isso ocorrer em virtude de um acordo firmado entre Aslan e Jadis, quando esta exige a entrega de Edmundo, condenado pela traição a seus irmãos. Do modo como as coisas são apresentadas no filme, não é descartada a possibilidade de alguém entender a redenção como uma troca realizada a partir de uma negociação entre o Redentor e o Tentador, como se o sangue do sacrificado tivesse de ser oferecido à Feiticeira. Levando a analogia às suas últimas instâncias, é como se a morte de Cristo na cruz fosse a forma de Deus dar satisfação às exigências do Diabo. Neste ponto, parece que Lewis concorda com a Teoria do Resgate, uma doutrina da redenção formulada por Orígenes de Alexandria (185—254). Orígenes entendia que Cristo teve de pagar resgate a Satanás, enganando-o e sobre ele triunfando na ressurreição. Este modo de compreender a obra de Jesus Cristo não foi oficializado pela igreja, mas reverberou e continua repercutindo entre alguns cristãos. Nesse ponto, entendamos que Lewis nunca se assumiu como Teólogo da Igreja. Ele insistia em dizer que escrevia apenas como um cristão que ensinava Literatura.

Limitações da evangelização por meio da fantasia

A intenção de Lewis é boa, mas há de ser considerada a dificuldade em pintar o evangelho com as cores da fantasia. O evangelho bíblico é por demais simples e por isso mesmo chocou tanto aos judeus quanto aos gentios do 1º século. Uma coisa é elaborar um mundo fantástico a fim de comunicar verdades universais, inclusive de fundo bíblico. Outra coisa é fazer isso como parábola do evangelho. Lewis merece o crédito de tentar e conseguir um resultado razoável, mas inevitavelmente inferior ao relato simples da Palavra de Deus.

Eu creio que o objetivo de Lewis é divertir com boa literatura cristã, nos brindar com uma aventura em um universo maravilhoso — e este último termo, neste post, significa o que “não é real”, ainda que, em seu conteúdo, aponte para aspectos da realidade. Nesses termos, o uso da mitologia é considerado cristão, tal como estabelecido por Gene Edward Veith Jr., Deão da Escola de Artes e Ciências e professor de Inglês na Universidade Concordia, em Wisconsin, EUA:

Não seria errado dizer que os cristãos primitivos inventaram a fantasia, ou a ficção, por meio de suas atitudes com os mitos. Para eles, os mitos não eram verdadeiros, e os mantinham em seu currículo educacional como meras histórias.
Conforme observa Werner Jaeger (Paideia: Os Ideais da Cultura Grega. Nova York: Oxford University Press, 1965), foram os cristãos que, finalmente, ensinaram aos homens a avaliar a poesia por um padrão puramente estético, padrão este que os capacitou a rejeitar a maioria dos ensinos morais e religiosos dos poetas clássicos como falsos e ímpios, mas sem deixar de aceitar os elementos formais da sua obra como sendo instrutivos e esteticamente agradáveis.
O mundo das histórias infantis é um âmbito de ordem moral rigorosa. Quando usadas corretamente, as fantasias podem ajudar a instilar a ordem moral na personalidade da criança.
Matéria publicada no Christian Research Journal do Instituto Cristão de Pesquisas dos Estados Unidos e adaptada pelo ICP do Brasil. Publicada na revista Defesa da Fé, março 2001, p. 14-24.

Li alguns livros de C. S. Lewis: Cristianismo Puro e Simples, Os Quatro Amores, Surpreendido Pela Alegria, Cartas de um Diabo a Seu Aprendiz, O Grande Abismo, O Problema do Sofrimento, A Abolição do Homem, alguns volumes das Crônicas de Nárnia e Cartas a Malcolm: Reflexões Sobre o Diálogo Íntimo Entre Homem e Deus. Assisti ao filme no dia de seu lançamento, gostei e o recomendo como entretenimento edificante. Na fila do cinema identifiquei alguns evangélicos e percebi, pelos comentários, um entusiasmo exagerado, até mesmo a ideia de que se trata de um excelente gancho para a evangelização, e esse é o aspecto preocupante.

Penso que é necessário reconhecer que os dotes de Lewis para a ficção são inquestionáveis e o conjunto de seus escritos não pode ser desconsiderado. Para ser sincero, discordo daqueles que enxergam fanaticamente em O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa uma obra de cunho esotérico e, portanto, demoníaco (veja minhas opiniões sobre isso em minha resenha sobre O Senhor dos Anéis e a Batalha Entre o Bem e o mal).

É preciso precaver-se, no entanto, da ingenuidade tanto intelectual quanto espiritual. C. S. Lewis é um importante escritor do século 20 e a republicação de suas obras, em decorrência do mercado criado pelo filme, é muito bem-vinda. Seria bom, no entanto, que tanto o filme quanto tais escritos fossem apreciados em sua devida medida, como bom cinema e literatura, mas não como fontes indubitáveis de doutrina cristã.

Não se pode esquecer que, desde o 1º século, a igreja buscou aproximar Cultura e Fé. Da morte dos apóstolos até a Idade Média (principalmente com Tomás de Aquino), a igreja se esforçou por articular o Cristianismo em termos satisfatórios à Filosofia (Ciência) e Arte. A Teologia dos séculos 18 a 20 foi marcada pela tentativa de alinhar o evangelho tanto ao Racionalismo quanto ao Romantismo, Existencialismo e Pós-Modernismo. As Teologias Negra, Feminista, de Libertação e a Nova Hermenêutica empreenderam, cada uma a seu modo, uma releitura da Bíblia a fim de torná-la mais afinada com as questões e a linguagem da atualidade. Muito da Pintura, Escultura, Literatura e Teologia Filosófica dos últimos dois mil anos expressou, eloquente e sinceramente, o lugar de destaque da Religião Cristã. Alguns empreendimentos foram razoavelmente bem-sucedidos, outros fracassaram terrivelmente.

Não há problema em usar a Arte ou a Ciência a fim de destacar aspectos do evangelho. De certo modo, porém, cuidemos de separar o evangelho de quaisquer adereços. Uma pessoa pode até se sentir atraída pela religião em decorrência da Literatura, Pintura, Música ou abstração filosófica, mas a verdadeira conversão ocorre somente como resposta à graça de Deus revelada no evangelho bíblico. Ademais, se a tentativa de construir a ponte entre o Cristianismo e a Cultura (através da Arte e Ciência) desvia as pessoas da simplicidade do evangelho, a iniciativa deixa de ser virtuosa e se torna pecaminosa. Em suma, mesmo apreciando estas boas contribuições da Literatura e das Artes, nunca devemos nos esquecer de que o mundo é salvo ao responder à pregação do evangelho com arrependimento e fé, e não meramente aplaudir ao entretenimento cristão. A Igreja, a Ciência (Filosofia) e as Artes funcionam em esferas que se inter-relacionam, mas devem ser compreendidas como distintas.

Concluindo…

Construir pontes entre o Cristianismo e a Cultura é bom e necessário. Deve haver estímulo para a produção literária e artística prolífica, conectando a fé bíblica ao cotidiano humano, purificando e enriquecendo a cultura notadamente cooptada pelo Materialismo e Paganismo. Há de ser observado, no entanto, que, para ser eficiente em termos de cumprimento de sua missão ou doutrinação dos fiéis, o Cristianismo prevalecerá quanto mais bíblico, ou seja, mais simples, ele permanecer.

Você deseja entreter-se? Assista O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa. Você deseja enriquecer-se culturalmente? Analise o filme (e o livro) com olhos literatos, cavando suas crenças e valores subjacentes. Você deseja mostrar o Senhor Jesus Cristo aos seus familiares, amigos e conhecidos? Não há nada mais eficaz do que o testemunho pessoal do simples e “antigo evangelho”.

    3 Comentários

  1. Neto Toscano
    07/07/2016

    Excelente texto. Tirou-me uma grande dúvida. Deus abençoe o senhor.

  2. A você também Neto. Obrigado por tocar no assunto e me fazer lembrar do texto. Grande abraço.

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