A Igreja de Éfeso: Ortodoxia carente de amor

— por

Se não tiver amor, nada disso me aproveitará (Apóstolo Paulo, 1Co 13.3).

Éfeso

Carta à Igreja de Éfeso (Ap 2.1-7)

[1] Ao anjo da igreja em Éfeso escreve: Estas coisas diz aquele que conserva na mão direita as sete estrelas e que anda no meio dos sete candeeiros de ouro:

[2] Conheço as tuas obras, tanto o teu labor como a tua perseverança, e que não podes suportar homens maus, e que puseste à prova os que a si mesmos se declaram apóstolos e não são, e os achaste mentirosos; [3] e tens perseverança, e suportaste provas por causa do meu nome, e não te deixaste esmorecer.

[4] Tenho, porém, contra ti que abandonaste o teu primeiro amor. [5] Lembra-te, pois, de onde caíste, arrepende-te e volta à prática das primeiras obras; e, se não, venho a ti e moverei do seu lugar o teu candeeiro, caso não te arrependas. [6] Tens, contudo, a teu favor que odeias as obras dos nicolaítas, as quais eu também odeio.

[7] Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas: Ao vencedor, dar-lhe-ei que se alimente da árvore da vida que se encontra no paraíso de Deus.

A primeira das sete cartas descreve uma igreja que convivia com uma situação de incoerência entre prática e doutrina. Exteriormente a comunidade de Éfeso tinha vários motivos para ser louvada e apreciada:

  • Ela era uma igreja ativa. Isso transparece por duas expressões: “labor” (2.2), que significa trabalho duro e “perseverança” (2.3), que, no texto grego significa, literalmente, trabalho extenuante, esgotamento. Os efésios trabalhavam com afinco para o Senhor; suas atividades eram numerosas e extensas, ao ponto de gerar esgotamento físico, mental e emocional. Nos dias de hoje, quem sabe, teriam cultos todos os dias nos períodos diurno e noturno, vários iniciativas de mídia, ministérios diversificados, um eficiente serviço de ação social e uma imagem que impactaria a sociedade em redor.
  • Era uma igreja corajosa, pois aqueles cristãos praticavam a perseverança, indignavam-se contra os homens maus e tinham coragem de enfrentá-los (2.2). Formavam um grupo de crentes zeloso e viril, disposto a ir até as últimas consequências de sua fé (2.3).
  • Outra característica daquela congregação era a sua ortodoxia. Os efésios possuíam acurado discernimento espiritual, ao ponto de testar os falsos apóstolos e declará-los mentirosos. Eles não davam pulinhos e gritavam aleluias enquanto os falsos mestres ensinavam heresias. Pelo contrário, eram firmes e dogmáticos em sua crença. Haviam ultrapassado a fase de “meninos agitados de um lado para outro por todo vento de doutrina” (Ef 4.14). Eram adultos, amadurecidos. Tanto sua pregação quanto seu ensino eram firmemente alicerçados na Palavra de Deus.
  • Outra preocupação daqueles irmãos era com relação à santidade. Eles odiavam “as obras dos nicolaítas” (2.6). Eles não eram relaxados em seu viver diário, mas profundamente dispostos a uma consagração contínua ao Senhor.

Qual era então o problema daquela igreja? “Tenho porém contra ti que abandonaste o primeiro amor”, diz Apocalipse 2.4.

Tenho ouvido mensagens que consideram que esse “primeiro amor” diz respeito ao ânimo ou fervor dos crentes. Pessoas que antes evangelizavam já não evangelizam mais; alguns que participavam dos cultos de oração não comparecem mais; crentes antes fervorosos agora estão desanimados. Isso é sinal de que houve um abandono do “primeiro amor”. O retorno a esse amor, conforme dizem, consiste em retornar à rotina de maior atividade para o reino de Deus.

O problema é que, como observamos acima, não há base para afirmarmos que a igreja de Éfeso era desanimada ou inativa. Aqueles cristãos sabiam o que é trabalhar exaustivamente no reino de Deus.

O que faltava aos efésios era o amor fraternal. Apesar de todo o seu esforço, equilíbrio e dedicação, eles haviam deixado de amar uns aos outros. Sendo assim, eles perderam a identidade de discípulos e anularam a eficácia do seu testemunho (cf. Jo 13.35; 17.21). O amor é a seiva essencial que vivifica a doutrina e torna legítimas todas as realizações. Sem ele tudo é inútil (1Co 13.1-3).

Esta primeira carta é uma séria advertência às igrejas que promovem uma espiritualidade ativista mas vazia de conteúdo afetivo-relacional. Cada igreja deve ser uma comunidade, e essa palavra denota que as pessoas que dela participam possuem “tudo em comum” (At 2.44; 4.32). Comunidade implica em comunhão. As pessoas precisam conhecer-se e entrelaçar-se umas com as outras nos profundos laços da irmandade santa. É necessário que choremos e nos alegremos uns com os outros. É vital que confessemos uns aos outros os nossos pecados, que compartilhemos as cargas, que preservemos a unidade e nos estimulemos mutuamente à prática das boas obras (Rm 12.9, 10, 13, 15; Gl 6.1-5; Hb 10.23-25; Tg 5.13-16).

O amor não existe em isolamento: afastado dos outros, se deforma e se transforma em orgulho. Ninguém recebe a graça de modo privado. Longe dos outros, a graça se deturpa e vira cobiça. A esperança não se desenvolve na solitude. Alheia à comunidade, a esperança é semente de fantasias. Nenhum dom, nenhuma virtude se desenvolve a se mantém saudável fora da comunidade de fé (PETERSON, 2005, p. 73).

Amar incondicionalmente aos nossos irmãos é uma tarefa que exige esforço (Ef 4.1-3). Os que a realizam são verdadeiros vencedores (2.7).

Cristo chama os seus seguidores a se arrependerem de sua indiferença e voltarem à prática do amor. A igreja que não se dispuser a isso será eliminada, o seu candeeiro será “removido” (2.5). Isso porque quando deixa de existir amor numa igreja, esta, na verdade, deixa de ser igreja. Torna-se clube religioso, representação oca e falsa de uma essência espiritual que não existe mais. A vida em Cristo torna-se um “compromisso” de dedicação rotineiro, onde as obrigações são cumpridas, os rituais são realizados, mas a misericórdia e o amor são esquecidos e não há mais envolvimento entre eu e o meu irmão.

Deus nos perguntará: “Onde está o teu irmão?” e nós responderemos: “Não sei; acaso sou eu tutor de meu irmão?” (Gn 4.9). Essa indiferença, que é a mais sofisticada expressão do ódio e do individualismo, sempre ocorre depois que assassinamos o irmão dentro de nossos corações (1Jo. 3.15). Não é incomum imaginarmos que cultuamos a Deus enquanto abandonamos os relacionamentos fraternos — subimos ao “altar” e “ofertamos” para, em seguida, retornarmos para a existência centrada em nosso próprio umbigo. Os que desfrutam de fato do evangelho, por sua vez, dedicam-se à vida comunitária motivados por amor sacrificial.

Os cristãos amorosos, os vencedores, comerão da “árvore da vida que se encontra no paraíso de Deus” (2.7). Essa “árvore” é um símbolo para o restabelecimento da comunhão existente antes da queda. Além disso ela é um elemento de contraste, pois “em Éfeso era adorada uma árvore sagrada” (ELLUL, 1979, p. 142).

Referência Bibliográfica

ELLUL, Jacques. Apocalipse: Arquitetura em movimento. São Paulo: Paulinas, 1979.

PETERSON, Eugene. Trovão inverso: O livro do Apocalipse e a oração imaginativa. Rio de Janeiro: Habacuc, 2005.

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Respostas

  1. Avatar de Edvaldo
    Edvaldo

    A Paz do Senhor amado irmão. Gostei muito desse comentário. Pois concordo plenamente nas suas colocações aqui. Sei que o primeiro amor que a Bíblia fala com certeza era (e é) o amor fraternal. Que Deus continue abençoando você, sua família e o seu ministério. ” Considera o que digo, porque o Senhor te dará entendimento em tudo”, (2 Tm 2.7).

  2. Misael Nascimento: Somente Pela Graça » Blog Archive » Igreja missional ou igreja pactual?

    […] Escrevi um breve comentário sobre a carta de Cristo à Igreja em Éfeso. Você pode conferi-lo em http://www.misaelbn.com/2008/03/a-igreja-de-efeso-ortodoxia-carente-de-amor/. Quanto a 1Coríntios 13, considero assustadora a ideia de alguém poder empreender atos […]

  3. Avatar de Daniara Alves
    Daniara Alves

    bom comentário!

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