Por minha causa sereis levados à presença de governadores e de reis,
para lhes servir de testemunho, a eles e aos gentios
(Jesus Cristo, Mateus 10.18).
Carta à Igreja de Esmirna
(Ap 2.8-11)
[8] Ao anjo da igreja em Esmirna escreve: estas coisas diz o primeiro e o último, que esteve morto e tornou a viver: [9] Conheço a tua tribulação, a tua pobreza (mas tu és rico) e a blasfêmia dos que a si mesmos se declaram judeus e não são, sendo, antes, sinagoga de Satanás. [10] Não temas as coisas que tens de sofrer. Eis que o diabo está para lançar em prisão alguns dentre vós, para serdes postos à prova, e tereis tribulação de dez dias. Sê fiel até a morte, e dar-te-ei a coroa da vida. [11] Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas: O vencedor de nenhum modo sofrerá dano da segunda morte.
A carta à Esmirna é a mais curta das sete cartas. Não encontramos nela nenhuma reprovação ou advertência de juízo. Cristo fala aos esmirnenses com ternura e afetuosidade.
O Senhor apresenta-se nessa carta como aquele que passou pelo sofrimento e morte e obteve vitória através da ressurreição. Ele é o Deus auto-existente, “o primeiro e o último” (2.8). Esses atributos revelados relacionam-se com a necessidade específica daqueles irmãos. A igreja de Esmirna era atribulada e pobre, sofrendo sob as intrigas e perseguições dos judeus daquela cidade.
O Apocalipse sinaliza aqui uma ruptura entre o Judaísmo e o Cristianismo. A comunidade judaica, notadamente influente em todo o Império, opunha-se ferrenhamente à seita dos nazarenos, de modo que o reduto de culto judaico é aqui chamado de “sinagoga de Satanás”— literalmente sinagoga do opositor, pois havia se tornado um antro de maquinações e difamação contra os servos de Jesus (2.9).
A perseguição aos esmirnenses seria dura e cruel. Cristo deixa claro que eles iam ser lançados em prisão para serem postos à prova, mas não deveriam ter medo (2.10). Isso se cumpriu à risca. Em meados do segundo século os cristãos de Esmirna foram acusados de ateísmo (não crer nos deuses pagãos). Gonzalez relata a prisão e tortura de cristãos afirmando que aqueles irmãos, “descansando na graça de Cristo, tinham em pouca conta as dores do mundo” (GONZALEZ, 1984, p. 70). Policarpo, bispo local, foi levado a julgamento.
As autoridades levaram o respeitado pastor para a superlotada arena, prepararam-se com relutância para lançá-lo aos leões. Preferiam que as acusações fossem negadas. Ele era um cristão.
“Simplesmente jure por Cesar”, disse o governador.
“Sou um cristão”, disse Policarpo. “Se quiser saber o que isso significa, marque uma data e escute.”
“Convença o povo”, respondeu o governador. Policarpo disse: “Posso explicar para você, mas não para eles.”
“Então, vou atirá-lo às feras.”
“Traga suas feras”, disse Policarpo.
“Se você zombar das feras, será queimado.”
“Você tenta me assustar com o fogo que arde por uma hora, mas se esquece do fogo do inferno, que nunca se apaga.”
O governador gritou para o povo: “Policarpo diz que é um cristão.” Então a turba se descontrolou. “Este é o professor da Ásia”, gritaram, “o pai dos cristãos, o destruidor de nossos deuses.”
Então, Policarpo, orando para que sua morte fosse um sacrifício aceitável, foi queimado.
(SHELLEY, 2004, p. 43).
A oração de Policarpo foi comovente: “Senhor Deus Soberano […] dou-te graças, porque me consideraste digno deste momento, para que, junto a teus mártires, eu possa ser parte no cálice de Cristo. […] Por isso te bendigo e te glorifico. […] Amém” (GONZALEZ, op. cit., p. 72).
Observemos que a igreja de Esmirna não tinha como escapar do sofrimento. Pelo contrário, Cristo a direcionou rumo à tribulação. É claro que essa perseguição estava sendo infligida por Satanás (2.9-10). No entanto a mesma ocorria sob o governo soberano do Senhor. Conforme somos alertados por Ellul (1979, p. 144):
[…] as perseguições não estão fora da mão de Deus ([…] são obra do homem, mas a zona de possibilidade de perseguir por autonomia e iniciativa do homem está fixada). Deus, ao mesmo tempo que respeita a vontade da perseguição, que é expressão da independência dos homens, fixa-lhe uma fronteira, como à potência do caos na criação.
Isso fica claro pela palavra “prova” (2.10). A perseguição aparentemente absurda era um elemento de teste e aperfeiçoamento dos santos. Para os filhos da aliança “todas as coisas cooperam para o seu bem” (Rm 8.28).
Uma igreja pobre, humilde em todos os aspectos, sem influência entre os poderosos, caluniada, esmagada e moída. No entanto, conforme Cristo, ela é rica. Cristo fala no tempo presente. Isso porque a sua Palavra muda a essência espiritual da realidade. Qual o socorro que Cristo envia àqueles irmãos? Apenas a sua Palavra. Só isso. Nada mais. Nenhuma redução do ímpeto da perseguição. Nenhuma escapatória aos sofrimentos físicos-materiais. Nenhum plano de salvação da desgraça financeira e social. Somente a promessa. A fé se equilibra unicamente sobre a Palavra.
A igreja de hoje considera o sofrimento prova de falta de fé, resultado do pecado ou de maldições hereditárias. Encontramos aqui um chamado à fé esperançosa, à coragem cheia de paz que brota de nossa confiança em Cristo. Somos chamados a trilhar o sofrimento porque ele mesmo o trilhou e venceu. Recebemos a garantia de que mesmo que morramos, receberemos a “coroa da vida”, não passando pela “segunda morte”, que é a morte espiritual (2.10,11).
De fato nós cremos? A fé bíblica extrapola todos os limites daquilo que se vê. Ela exulta no meio das trevas e da tempestade. Ela é forte mesmo diante do não de Deus. Aqueles irmãos esmirnenses devem ter suplicado e chorado ardentemente aos pés de Cristo, pedindo que os caluniadores fossem calados, que as dores fossem minoradas, que o sofrimento fosse eliminado e a morte evitada. Com certeza eles repetiram a oração do Senhor no Getsêmane: “Meu Pai, se é possível, esta taça passe longe de mim! Todavia, não como eu quero, mas como tu queres!” (Mt 26.39 — BÍBLIA TRADUÇÃO ECUMÊNICA, 1994, p. 1911). Mas Deus responde-lhes: Alguns de vocês morrerão. Terão um sofrimento por tempo indeterminado (dez dias). Fiquem firmes que a coisa vai piorar. Eu não os livrarei dos seus executores. Sejam fiéis até a morte e eu lhes darei a coroa da vida (2.10). Essa postura é praticamente inconcebível na espiritualidade atual que vê como graça divina apenas as bênçãos e jamais o sofrimento.
O discípulo caminha para a morte na dimensão da esperança de vida. Enfrenta a pobreza e as injustiças, sabedor de que é rico e servidor de um Deus justo. Consegue, como Habacuque e o salmista, sem nenhuma amargura, entoar poemas sagrados:
Ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto na vide; o produto da oliveira minta, e os campos não produzam mantimento; as ovelhas sejam arrebatadas do aprisco e nos currais não haja gado, todavia eu me alegro no SENHOR, exulto no Deus da minha salvação. Foi-me bom ter eu passado pela aflição, para que aprendesse os teus decretos […]. Bem sei, ó SENHOR, que os teus juízos são justos, e que com fidelidade me afligiste […]. Sobre mim vieram tribulação e angústia, todavia os teus mandamentos são o meu prazer.
Habacuque 3.17-19; Salmo 119.71, 75, 143.
É possível essa fé em meio à tribulação? É possível crer e adorar a Deus mesmo quando tudo à nossa volta aparentemente demonstra que ele não está agindo em nosso favor? Essa é a pergunta do Senhor para cada um de nós hoje.
Referências Bibliográficas
BÍBLIA TRADUÇÃO ECUMÊNICA. São Paulo: Loyola, 1994.
ELLUL, Jacques. Apocalipse: Arquitetura em movimento. São Paulo: Paulinas, 1979.
GONZALEZ, Justo L. E até aos confins da terra: Uma história ilustrada do Cristianismo: A era dos mártires. 2ed. São Paulo: Vida Nova, 1984. v. 1.
SHELLEY, Bruce L. História do Cristianismo ao alcance de todos. São Paulo: Shedd Publicações, 2004.
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