O valor e os limites da ortodoxia (parte 01)

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Em pleno início de século XXI, qual é o valor da ortodoxia? É possível estabelecer seus limites? Tais questões são importantes para aqueles que desejam caminhar com o Senhor observando o dito apostólico: “Tem cuidado de ti mesmo e da doutrina. Continua nestes deveres; porque, fazendo assim, salvarás tanto a ti mesmo como aos teus ouvintes” (1 Tm 4.16).[1]

O termo ortodoxia é estranho às Escrituras, só encontrado na literatura cristã a partir do segundo século.[2] Isso tem levado alguns a afirmar que o cristianismo dos primórdios não considerava importante o alinhamento dos crentes a um padrão de doutrina — “o período em que a igreja mais cresceu”, dizem, “foi quando não haviam definições absolutas de correção doutrinária”. Destarte, o estabelecimento dos dogmas é interpretado como ato correlato à institucionalização da igreja e perda de espontaneidade da fé.[3] Leituras sociológicas da história eclesiástica sugerem, ademais, que aquilo que foi firmado como dogma nada mais é do que o ponto de vista dos poderosos; não se trata da sistematização da verdade bíblica; a doutrina é tida como mero recurso da política eclesiástica. Outros não conseguem desvincular a ideia de ortodoxia dos abusos da inquisição e do fundamentalismo:[4] ser ortodoxo equivale a ser arcaico ou irrelevante, bitolado e destituído de amor ao próximo. O importante é reproduzir o exemplo e o “caminho” de Jesus e isso não tem nada a ver com quaisquer padrões confessionais. A doutrina divide; o amor une.[5]

No texto citado acima, Timóteo é exortado a ter cuidado com “o que ensina” (didaskalia). Tal conteúdo é fundamental para a salvação. Em um contexto mais amplo, trata-se das “sagradas letras” (2Tm 3.14-17), e, especificamente, do “evangelho” (Rm 1.16; 1Co 15.1-4 et seq.). Afastar-se de tais verdades equivale a colocar-se sob maldição (Gl 1.8-9). Esta orientação é uma ressonância da palavra de Cristo. Seus seguidores são santificados “na verdade” (Jo 17.17) e precisam estar alertas para não serem enganados por falsos mestres (Mt 24.24). A missão da Igreja, nos termos firmados pelo Redentor, é ensinar (didasko) aos discípulos aquilo que ele ensinou (Mt 28.20).

Quem leva isso ao ponto máximo é João, o apóstolo do “amor”. Aquele que “transgride o ensino de Cristo e não permanece nele não tem Deus. Quem permanece no ensino de Cristo tem tanto o Pai quanto o Filho. Se alguém vos procurar mas não trouxer este ensino [didacho], não o recebais em casa nem o saudeis” (2Jo 9-10).[6]

Independentemente do modo como os termos “doutrina”, “ensino” e “verdade” contidos nestas passagens são interpretados, duas coisas podem ser ditas. Primeiro, é plausível afirmar que tanto Jesus quanto os discípulos dos tempos do Novo Testamento assumiam um conjunto de proposições extraídas da Palavra de Deus [7] que servia para aferir a veracidade de discursos e mestres. Segundo, Timóteo deveria alinhar-se a determinado padrão naquilo que ensinava.[8]

Se isso é assim, a movimentação da igreja a partir do segundo século não foi no sentido de estabelecer um novo alicerce conceitual — uma ideologia que sustentasse determinadas políticas — e sim esforçar-se para manter-se dentro de uma trilha estabelecida por Cristo e pelos escritores neotestamentários. O fato da igreja ter utilizado uma nova terminologia não deslegitima sua iniciativa. “Ortodoxia” e “Trindade” são palavras cunhadas nos concílios eclesiásticos, mas tanto a ênfase na correção doutrinária quanto na unicidade e pluralidade de pessoas na divindade estão contidas no Novo Testamento.

1. O que é ortodoxia?

De modo geral, ortodoxia é “o equivalente em português da palavra grega orthodoxia (de orthos ‘certo’, e doxa, ‘opinião’), o que significa crença correta, em contraste com a heresia ou a heterodoxia.”[9] Uma definição mais detalhada é fornecida por McGrath:[10]

Termo empregado com diversas acepções, dentre as quais as mais importantes são: (a) “doutrina correta”, em oposição a heresia; (b) forma de cristianismo dominante na Rússia e na Grécia; (c) corrente que surgiu no seio do protestantismo, sobretudo no final do século XVI e início do século XVII, e que destacava a necessidade da definição doutrinária.

A ortodoxia é responsiva, ou seja, desenvolveu-se como resposta a falsos ensinos, de modo que “é quase impossível apreciar o significado da ortodoxia sem entender as heresias que a forçaram a se definir. […] A fim de compreender corretamente o dogma ortodoxo da Trindade, é necessário entender os ensinos de Ário de Alexandria”.[11] O caráter reativo da ortodoxia explica sua terminologia. Os argumentos dos defensores da fé cristã contêm palavras que, ainda que estranhas ao Novo Testamento, combinam com a cultura na qual estava inserido cada debate teológico.

Não há problema algum nessa faceta reativa da ortodoxia. Desarticulando as falas dos que afirmam que a igreja deve deixar de ser reativa, a Escritura refere-se a “armas de justiça, quer ofensivas, quer defensivas” (2Co 6.7). O trabalho da Teologia não é inútil. O esforço intelectual no gabinete de estudos é obra espiritual e tão necessária quanto as tarefas de visitação e discipulado pessoal. A apologética, que bebe das fontes da Teologia e da Filosofia, serve à pregação e evangelização. É legítima e necessária a reação cristã de defesa da fé e do ministério da igreja. Os pragmáticos que consideram a ortodoxia inútil são responsáveis pela superficialidade e heterodoxia do evangelicalismo contemporâneo. Aqueles que afirmam que no céu não haverá Teologia desconsideram a própria essência da Teologia (conhecer a Deus) e da vida celestial, que será de eterno conhecimento de Deus. A diferença é que na vida glorificada não há heterodoxia, uma vez que nos tornamos semelhantes a Cristo e conhecemos como também somos conhecidos (1Jo 3.1-2; 1Co 13.12).

2. Círculos concêntricos da ortodoxia

A definição fornecida por McGrath é útil no sentido de referir-se a diferentes acepções da ortodoxia. Colocando a questão de outra forma, é possível identificar três círculos de ortodoxia, o maior referindo-se à ortodoxia ampla, um segundo apontando para a ortodoxia evangélica[12] e um terceiro dizendo respeito à ortodoxia reformada (figura 01).

Círculos da Ortodoxia

Círculos concêntricos da ortodoxia

Detalhes sobre cada um dos círculos serão fornecidos a partir do próximo post.

Notas

1. Grifo nosso. Para a heterodoxia esta passagem não é apostólica. VOLKMANN, Martin. Teologia Prática e o Ministério da Igreja. In: SCHNEIDER-HARPPRECHT, Christoph. (Org.). Teologia Prática no Contexto da América Latina. São Leopoldo: Sinodal, 1998, entende que as epístolas Pastorais (1 Timóteo, 2 Timóteo e Tito) não foram escritas por Paulo, mas surgiram no contexto de “solidificação” e “estruturação” da igreja, no final do primeiro século (ibid., p. 85). Esse ponto de vista é compartilhado por outros autores (e.g., BRUNNER, Emil. O Equívoco Sobre a Igreja. São Paulo: Novo Século, 2000, p. 88; CHARPENTIER, Etienne. Para Ler o Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 1992, p. 52; GABEL, John B.; WHEELER, Charles B. A Bíblia Como Literatura. São Paulo: Loyola, 1993, p. 191-192; HARRINGTON, Wilfrid J. Chave Para a Bíblia: A Revelação, a Promessa, a Realização. São Paulo: Paulinas, 1985, p. 554, 556; KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 319, 320, 321), cuja análise detalhada das ponderações foge ao escopo do presente estudo. Pode ser afirmado, porém, que há argumentação consistente e suficiente, por parte da erudição contemporânea, para a aceitação da autoria paulina das epístolas Pastorais (e.g., BLOMBERG, Craig L. A Credibilidade Histórica do Novo Testamento. In: CRAIG, William L. (Ed.). A Veracidade da Fé Cristã: Uma Apologética Contemporânea. São Paulo: Vida Nova, 2004, p. 191-235; CARSON, D. A.; MOO, Douglas J.; MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. 1. ed. reimp. (2002). São Paulo: Vida Nova, 1997, p. 395-411; GUNDRY, Robert H. Panorama do Novo Testamento. 2. ed. reimp. (2003). São Paulo: Vida Nova, 1998 p. 359-363; HALE, Broadus David. Introdução ao Novo Testamento. ed. rev. ampliada. São Paulo: Hagnos, 2001, p. 321-330; HENDRIKSEN, 2001, op. cit., p. 10-47; HINSON, E. Glenn. I e II Timóteo e Tito. In: ALLEN, Clifton J. (Ed.). Comentário Bíblico Broadman: Novo Testamento. Rio de Janeiro: Junta de Educação Religiosa e Publicações, 1985, p. 361-365; HARRIS, op. cit., p. 33-37, 217-255; RIDDERBOS, Herman. A Teologia do Apóstolo Paulo: A Obra Definitiva Sobre o Pensamento do Apóstolo dos Gentios. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 14-15, 520-522); ELLIS, E. Earle. Cartas Pastorais. In: HAWTHORNE, Gerald F.; MARTIN, Ralph P. (Orgs.). Dicionário de Paulo e Suas Cartas. São Paulo: Vida Nova, Paulus, Loyola, 2000, p. 181-191; MARSHALL, I. Howard. Teologia do Novo Testamento: Diversos Testemunhos, Um Só Evangelho. São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 345-363 e THIELMAN, Frank. Teologia do Novo Testamento: Uma Abordagem Canônica e Sintética. São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 261-278, 487-573.

2. PACKER, J. I. Ortodoxia. In: ELWELL, Walter A. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã. São Paulo: Vida Nova,1990, v. 3, p. 70.

3. cf. BRUNNER, op. cit., passim.

4. O termo “fundamentalismo” é utilizado aqui em sua conotação negativa. Em escritos contemporâneos, o vocábulo é ligado a atitudes como intransigência, orgulho, incapacidade de lidar com o diferente ou plural e uso de violência, desde calúnias, difamações, abuso moral ou perseguições até assassinato. Não há nenhum problema em ser fundamentalista no sentido expresso pelo Dicionário Houaiss: “qualquer corrente, movimento ou atitude, de cunho conservador e integrista, que enfatiza a obediência rigorosa e literal a um conjunto de princípios básicos”. Cf. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Sales. (Ed.). Fundamentalismo. In: Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão 1.0.5a. Editora Objetivo Ltda., 2002. CD-ROM. O cristianismo destaca o seguimento estrito de “um conjunto de princípios básicos” que lhe dão distinção, ou seja, identidade.

5. Um detalhe a considerar é que alguns que advogam tais postulados não estão muito dispostos a amar aqueles a quem consideram “fundamentalistas” ou “ultraconservadores”. A abertura ao pensamento plural só é advogada por estes quando lhes favorece a interpretação.

6. GOMES, Paulo Sérgio; OLIVETTI, Odayr. Novo Testamento Interlinear Analítico: Texto Majoritário Com Aparato Crítico: Grego — Português. São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 896. Grifos nossos.

7. No caso de Jesus, não apenas as palavras do Antigo Testamento, mas seus próprios ditos. Cf. Jo 5.24; Hb 1.1-2.

8. Para o apóstolo dos gentios, o critério para avaliação do trabalho daqueles que ensinam é a consistência com o “fundamento” lançado por ele, Paulo (1Co 3.10-15; cf. Rm 2.16). Ainda que ele esclareça que tal fundamento é Cristo (v. 11), trata-se de uma articulação proposicional definida sobre a pessoal e obra do Redentor, e as implicações práticas dessa redenção (cf. Ef 2.20).

9. PACKER, op. cit., loc. cit.

10. McGRATH, Alister E. Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica: Uma Introdução à Teologia Cristã. São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 656.

11. OLSON, Roger. História da Teologia Cristã: 2000 Anos de Tradição e Reformas. São Paulo: Vida, 2001, p. 21.

12. Não me refiro aqui à ortodoxia protestante, o movimento de organização sistemática da doutrina reformada, em resposta aos postulados das Teologias Luterana e Católica; cf. McGRATH, Alister E. Teologia Histórica: Uma Introdução à História do Pensamento Cristão. São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 187-191. Uso a expressão ortodoxia evangélica referindo-me ao conjunto de verdades bíblicas assumidas tanto por cristãos evangélicos arminianos quanto por calvinistas.

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