O envelope bonito chamou a atenção de Viviane — um convite para o evento de consagração de sua amiga de faculdade ao pastorado. Viviane, que era membro de uma igreja que não ordenava pastoras, foi tirar dúvidas com seu pastor: Afinal de contas por que algumas igrejas permitiam pastoras e outras não?
Mesmo com as explicações do reverendo Petrus, sobre as posições a favor ou contra o presbiterato feminino, Viviane ainda abrigava em seu coração muitas inquietações. Ela queria entender melhor essas questões à luz da Bíblia.
1. Igualdade e submissão entre o Pai e o Filho na Trindade
Afirmamos em outra ocasião que “não é saudável enfatizar uma pessoa da Trindade em detrimento das demais”.[1] Tanto o Pai quanto o Filho e o Espírito Santo “devem ser reverentemente considerados, honrados, adorados e servidos”.[2] Isso é assim porque “a divindade do Pai e do Filho e do Espírito Santo é uma, igual em glória, igual em majestade”.[3] Em suma, todas as pessoas da Trindade possuem a mesma dignidade.
Entenda-se, porém, que na Trindade, igualdade de dignidade não equivale a igualdade de funções. Cada uma das pessoas divinas age singularmente com a finalidade de assegurar o cumprimento do pacto.[4] É digno de nota que nesta realização Deus Filho se submete a Deus Pai.
Disse-lhes Jesus: A minha comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra (Jo 4.34).
Eu nada posso fazer de mim mesmo; na forma por que ouço, julgo. O meu juízo é justo, porque não procuro a minha própria vontade, e sim a daquele que me enviou (Jo 5.30).
Porque eu desci do céu, não para fazer a minha própria vontade, e sim a vontade daquele que me enviou (Jo 6.38).
De acordo com este modelo, o exercício de autoridade e a prática da submissão não implicam em diminuição de dignidade ou valor do liderado. O fato de Cristo ser submisso a Deus Pai não indica que aquele seja menor em dignidade do que este. O complementarismo tem sua base na perfeita relação entre Pai e Filho, na Trindade.[5]
2. A oração e profecia feminina em 1Coríntios 11
Ao instruir as mulheres da Igreja de Corinto a utilizarem o véu para orar e profetizar, o apóstolo Paulo destaca um princípio aplicável a todas as mulheres cristãs, de todos os tempos.
2.1. O ensino de Paulo sobre o uso do véu
O ensino é iniciado com uma referência às relações entre Deus Pai e Cristo, entre Cristo e “todo homem” e entre o homem e a mulher (v. 3).
Quero, entretanto, que saibais ser Cristo o cabeça de todo homem, e o homem, o cabeça da mulher, e Deus, o cabeça de Cristo (1Co 11.3).
Há um debate entre os estudiosos sobre o sentido exato do termo “cabeça” (kephalē). A expressão é entendida por alguns estudiosos como significando “fonte” ou “origem”. A ideia de centro de comando ou “autoridade é mais condizente com o contexto.[6] Paulo fala de Deus o Pai exercendo autoridade sobre Deus o Filho, de Deus o Filho exercendo autoridade sobre o homem, e deste último exercendo autoridade sobre a mulher.
Os versos seguintes apresentam um jogo de palavras: Ao orar e profetizar com a cabeça coberta, o homem desonra seu cabeça que é Cristo; ao orar e profetizar com a cabeça descoberta, a mulher desonra seu cabeça que é seu marido.[7]
4 Todo homem que ora ou profetiza, tendo a cabeça coberta, desonra a sua própria cabeça. 5 Toda mulher, porém, que ora ou profetiza com a cabeça sem véu desonra a sua própria cabeça, porque é como se a tivesse rapada (1Co 11.4-5).
A Escritura prossegue afirmando a expressa necessidade da mulher utilizar véu ao orar e profetizar. A expressão traduzida por “véu” tem o significado literal de “cobertura” e refere-se provavelmente ao kalumma, uma cobertura para o cabelo que fazia parte da “roupa diária normal de todas as mulheres gregas”.[8] Ela deve fazer isso por duas razões:
- Deixar de usar o véu equivale a cortar ou raspar o cabelo, o que “lhe é vergonhoso” (v. 6). Na época de Paulo, as mulheres que não usavam o véu eram denominadas “hetairai, as amantes de ‘alta categoria’ dos coríntios influentes”.[9] Quanto aos cabelos raspados, era costume raspar o cabelo de adúlteras ou de escravos.[10] Sendo assim, uma mulher que orasse ou profetizasse no culto sem cobrir a cabeça abria um espaço para um escândalo que manchava o testemunho cristão.
- O véu representa ainda a submissão da mulher, seu respeito aos homens, de modo geral, e ao seu marido, em particular. O ensino apostólico parece referir-se à submissão feminina à autoridade social — homem — e espiritual — anjos (v. 10). Ainda que essa referência aos “anjos” seja misteriosa, fica claro que o véu simboliza respeito à autoridade.
Se a mulher coríntia põe de lado o pano com que cobre a cabeça em público, ela nesse gesto renuncia à subordinação a seu marido, que Deus pretendeu que ela mostrasse. Ela se apropria da autoridade que pertence ao seu marido. Quando na Igreja de Corinto uma mulher vai contra a estrutura da criação, ela desonra seu marido.[11]
Isso é reforçado pelo que segue: O homem não deve cobrir a cabeça porque, se por um lado, homem e mulher refletem a imagem e semelhança de Deus, por outro, a mulher, a glória do homem (Gn 1.26-27; 1Co 11.7). Além disso, a mulher foi feita a partir dele, ou seja, de uma de suas costelas (Gn 2.22; 1Co 11.8). Por fim, a mulher foi criada em decorrência da constatação de uma necessidade do homem — por causa dele (Gn 2.18; 1Co 11.9).[12]
Isso não significa, porém, superioridade masculina ou feminina. Homem e mulher precisam um do outro — são interdependentes e complementares.
11 No Senhor, todavia, nem a mulher é independente do homem, nem o homem, independente da mulher. 12 Porque, como provém a mulher do homem, assim também o homem é nascido da mulher; e tudo vem de Deus (1Co 11.11-12).
Os versículos 13-16 finalizam o argumento reafirmando o ensino.
2.2. Fatos e princípios úteis
O texto em questão nos apresenta dois dados importantes:
- As mulheres oravam e profetizavam na Igreja de Corinto.
- Paulo ordenou que elas, ao orar e profetizar, tomassem o cuidado de cobrir-se com um véu, a fim de darem bom testemunho e demonstrarem respeito pela autoridade masculina.
Alguns intérpretes argumentam que a referência de Paulo “à oração e à profecia é neutra. Ele simplesmente reconhece que isso está sendo feito antes de proibi-lo”.[13] Calvino, e.g., entende que em 1Coríntios 11.5 Paulo “não está fazendo uma concessão para profetizar, de forma alguma, senão que está protelando a censura contra esse erro”.[14]
Os autores destes estudos, no entanto, afirmam que uma leitura simples do texto parece indicar que aqui o apóstolo “esperava que as mulheres participassem ativamente da oração e da profecia”,[15] ou, como afirma outro estudioso, “a clara implicação do capítulo 11 é que Paulo aprova estas atividades [oração e profecia] por mulheres”.[16] Resumindo, “Paulo atribui as funções religiosas de orar e profetizar a ambos, homem e mulher”.[17]
Observe-se ainda que “profetizar”, nesse contexto, indica uma atividade pública de pregação, ensino ou explicação da revelação de Deus,[18] ou seja, o Senhor concede às mulheres um espaço, na igreja, para o ensino.
O único “porém” apostólico é o seguinte: Ao orar e profetizar a mulher não pode inverter a ordem da criação; ela deve submeter-se à autoridade masculina.[19]
Em outras palavras, embora Paulo permita que a mulher profetize e ore no culto, ele requer dela que se apresente de forma a deixar claro que está debaixo de autoridade, no próprio ato de profetizar ou orar. Para Paulo, a expressão exterior dessa condição da mulher é o uso do véu, já que o mesmo, na cultura oriental da época (e mesmo em algumas culturas hoje) expressava apropriadamente esse conceito.[20]
3. E daí?
No contexto brasileiro atual, o uso do véu é dispensável. Independentemente disso, as mulheres devem ser cuidadosas a fim de, em todas as coisas, dar bom testemunho de Cristo. Ademais, ao ensinar na Igreja, devem elas reconhecer e reportar-se à liderança masculina. Mais sobre isso será dito nos próximos estudos.
Reflexão, oração e louvor
Embora o homem seja como a cabeça, entretanto a mulher é como o coração, que é a parte mais excelente do corpo depois da cabeça, muito mais excelente que qualquer outro membro abaixo da cabeça, e quase igual à cabeça sob muitos aspectos, e tão necessário quanto a cabeça. William Gouge.[21]
Observação final: Este estudo é uma transcrição de NASCIMENTO, Misael Batista do; PORTO; Ivonete Silva. Curso Discipulado Maduro e Reprodutivo: Módulo 17. Introdução Aos Ministérios e Dons Espirituais. O Ofício de Pastor-Mestre. Brasília: Igreja Presbiteriana Central do Gama, 2009, p. 44.46.
Notas
[1] Leia mais sobre o ensino bíblico acerca do Espírito Santo à luz da doutrina da Trindade em NASCIMENTO, Misael Batista do; PORTO; Ivonete Silva. Curso Discipulado Maduro e Reprodutivo: Módulo 15. O Espírito Santo e o Discípulo no Pacto. Brasília: Igreja Presbiteriana Central do Gama, 2007.
[2] NASCIMENTO; PORTO; op. cit., loc. cit.
[3] Credo Atanasiano, apud NASCIMENTO, Misael Batista do; SILVA; Ivonete. Curso Discipulado Maduro e Reprodutivo: Módulo 14. O Deus do Pacto. 2. ed. Brasília: Igreja Presbiteriana Central do Gama, 2008, p. 25.
[4] Cf. NASCIMENTO; PORTO; 2007, p. 42-44.
[5] Os igualitaristas também utilizam os dados da Trindade a fim de sustentar sua posição. Eles dizem que a submissão do Filho ao Pai foi apenas temporária (durante a encarnação) e que na Trindade só há mútua submissão. Tal interpretação é equivocada por dois motivos: Primeiro, a afirmação de eterna geração pressupõe um vínculo filial eterno que denota, dentre outras coisas, eterna submissão. Daí o ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, precisar exprimir, na relação entre pai e filho, autoridade e submissão. Segundo, o postulado de mútua submissão permite afirmar que o Pai é submisso ao Filho, uma ideia que não é encontrada em nenhum lugar da Bíblia. Para uma resposta complementarista a estas questões, cf. GRUDEM, Wayne. Confrontando o Feminismo Evangélico. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 180-200. Cf. LOPES, Augustus Nicodemus. O Culto Espiritual. São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 64-65.
[6] Cf. v. 10; KISTEMAKER, Simon. 1Coríntios. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 507-511. (Comentário do Novo Testamento).
[7] Cf. SAYÃO, Luiz Alberto Teixeira (Coord.). Bíblia Sagrada Almeida Século 21: Antigo e Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2008. Notas textuais sobre 11.4 e 11.5, p. 1162.
[8] Cf. PRIOR, David. A Mensagem de 1Coríntios. São Paulo: ABU, p. 192. (Série a Bíblia Fala Hoje). Lopes (op. cit., p. 59, 60) nos informa que, no Oriente Médio, o véu era parte essencial do vestuário das “mulheres honradas”.
[9] PRIOR, op cit., p. 192-193. Talvez as prostitutas do templo local de Afrodite, também não usassem véu (ibid., p. 193).
[10] Ibid., loc. cit. Cf. KISTEMAKER, op. cit., p. 514-515.
[11] Ibid., p. 514.
[12]KISTEMAKER (ibid., p. 512-513) entende que, no paganismo, os homens oravam com a cabeça coberta. Nesse caso, a orientação de Paulo tem por objetivo afastar os homens cristãos de uma prática pagã.
[13] DONNELLY, Edward. As Mulheres Podem Pregar? In: EDWARDS, Brian (Ed.). Homens, Mulheres e Autoridade: Servindo Juntos na Igreja. São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2007, p. 141. (Série Encarando a Questão).
[14] CALVINO, João. 1Coríntios. São Paulo: Paracletos, 1996, p. 332-333.
[15] PRIOR, op. cit., p. 193.
[16] DONNELLY, op. cit., p. 142. Grifo nosso.
[17] KISTEMAKER, op. cit., p. 514. Grifos nossos.
[18] Ibid., p. 511-512.
[19] DONNELLY, op. cit., loc. cit.; PRIOR, op. cit., loc. cit.
[20] LOPES, op. cit., p. 62-63.
[21] GOUGE, William. Of Domestical Duties, apud IRWIN, Joyce L. (Ed.) Womanhood in Radical Protestantism, 1525-1675. Nova York, Edwin Mellen, 1979, p. 98, apud RYKEN, Leland. Santos no Mundo: Os Puritanos Como Realmente Eram. 2. ed. São José dos Campos: Fiel, 2013. p. 107.
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