Fui apresentado hoje à música Arde Outra Vez, de Thalles Roberto, um cantor evangélico cujas informações podem ser conferidas em seu site oficial (cf. http://www.thallesroberto.com.br/). Esta canção tem sido ouvida e elogiada até por celebridades da música baiana, e aclamada por alguns crentes. Uma página do YouTube registra os seguintes comentários (devidamente editados):
Linda é pouco; é extraordinária!
Isso é a coisa mais linda que eu já ouvi.
Essa música é a melhor música do mundo.
Mtmtmtmtmtmt boooooooooooooooooooooa essa musicaaa.
Eis a letra da música Arde Outra Vez
O homem fala
Eu não quero mais viver
Longe da Tua presença, meu Senhor
Hoje, quero voltar, voltar ao início de tudo
De quando eu era feliz
Sentia a Tua presença, caminhava ali, no seu jardim
Te encontrava todo dia
Mas me perdi, Senhor, no caminhar
Tentei andar sozinho na aventura
Dessa vida foi só ilusão
Confesso que andei perdido, sim,
Mas, hoje, eu Te devolvo um coração
Arrependido de tudo o que fez
Quero voltar, Senhor, para os Teus rios
Me molha, me lava, me ensina
Me inspira e Arde Outra Vez
No meu coração
Deus fala
“De braços abertos, quero Te receber
Filho, Eu estava esperando você
Você pra mim (Pra mim você) é tudo que Eu sonhei um dia
Eu te amo”…
A questão de músicos que não expressam bem o ensino da Bíblia
Confesso que Arde Outra Vez tem atrativos. A música é bem produzida, além de possuir sonoridade agradável, que remete ao timbre de voz e padrões melódicos de Seal e, ao mesmo tempo, de Kleber Lucas. Ademais, há um indiscutível (e desejável) foco devocional. O tema não deixa de ser bíblico e notadamente evangélico: uma pessoa reconhece que se afastou do caminho e se volta pra Deus com arrependimento e fé. Deus a acolhe festivamente (isso se encaixa perfeitamente com as três parábolas de Lucas 15.3-32). Esse mesmo tema tem sido cantado ao longo dos séculos, sendo mais do que pertinente para a adoração cristã.
Thalles Roberto se esforça para trabalhar esta temática. Analisando o resultado, porém, enxergo um bom músico com dificuldade de expressar-se biblicamente. Notem que eu não o critico levianamente; simplesmente verifico nele um sintoma da igreja atual, o desajuste entre Música e Teologia. Lutero, o músico, era Teólogo. Em Genebra, músicos profissionais produziram um hinário sob a supervisão de João Calvino. Atualmente há músicos que são convertidos e passam a produzir “música cristã” sem terem sido bem doutrinados. Daí, o que fazem, ainda que com boa intenção, não reflete com exatidão a verdade da Palavra de Deus.
Alguns problemas de Arde Outra Vez
Do ponto de vista da Bíblia, Arde Outra Vez não é “extraordinária”, nem “a melhor música do mundo”. De fato, temos de reconhecer que esta música apresenta um diálogo entre o adorador e o Espírito Santo de Deus (citado no início e no fim), sem qualquer alusão à pessoa e obra de Cristo. Tal lacuna é impressionante: Há uma referência ao “jardim”, à “perdição” e à “redenção”, sem qualquer menção de nosso Senhor Jesus Cristo. Como um não crente entende tais coisas? “Eu errei, buscarei a Deus e ele me dirá o quanto estava ansioso pra que eu fizesse isso”. Repetindo a lacuna: Não se fala sobre o Redentor e sobre a necessidade de reconciliação. Isso exigiria a apresentação de um “Deus irado” e, como veremos, o “deus” de Arde Outra Vez é “irado” em outro sentido (ele é o “deus” legalzão de um céu dançante).
De fato, Arde Outra Vez é imprópria para o cântico congregacional por ser uma música centrada no Homem (antropocêntrica). Ela inverte uma ideia elementar da adoração: adoração é o homem respondendo à Palavra de Deus, nos termos de Deus. Na música de Thalles Roberto, Deus é quem responde à palavra do adorador; de fato, Deus canta ao homem. Do ponto de vista da prática sadia de culto, isso é, no mínimo constrangedor. Mas isso seria ainda contornável, tendo em vista que, em alguns Salmos, misturam-se as falas do homem e de Deus. Em Salmos 91, por exemplo, o homem fala a Deus nos v. 1-2, e Deus fala ao homem, nos v. 14-15. O desconforto antropocêntrico de Arde Outra Vez encontra-se no teor da fala divina: “Você pra mim (pra mim você) é tudo que eu sonhei um dia”. Eu sou tudo pra Deus; Deus sonhou comigo. Dito de outro modo, eu estou no centro dos desejos de Deus. Tal linguagem imprecisa, adequada ao trato romântico humano, não cabe quando se trata da relação de Deus para com o homem. Talvez Thalles Roberto sequer imagine que seu fraseado desconsidera um ensino bíblico fundamental: o Deus soberano não sonha, mas decreta e faz (Is 46.10-11).
Outro detalhe é digno de atenção. Trata-se do modo de execução da música. A parte que contém a fala humana é suave, sugere devoção e termina com um silêncio solene. A fala de Deus é festiva e irreverente; o “deus” que se revela em Arde Outra Vez é dançante e, em determinado, se expressa com fonemas “fofos” (pra mim você é tudo, tudo, ô tudo-diúdo-diúdo-diúdo-diúdo-ê-ê…). Depois de “deus” falar em meio ao ambiente de rave, eis novo silêncio seguido de melodia calma, quando novamente fala o homem. Eu não tenho dificuldade com música dançante. O problema é com a ideia de um Deus “fofinho e dançante”. Já escrevi sobre isso em um post anterior. Não há uma base bíblica sólida e saudável para concebermos isso. Nesses termos, Arde Outra Vez erra porque não produz, no adorador, um senso de temor e reverência a Deus. O “deus” apresentado em Arde Outra Vez é muito mais um DJ do que o Criador, Redentor e Juiz do cosmos.
Por fim, impressiona a falta de racionalidade das letras de determinadas músicas evangélicas contemporâneas. Eu não estou dizendo que a composição musical cristã deva ser racionalista, ou desprezar a linguagem afetiva ou poética que implica no uso de analogias e outros recursos imaginativos próprios da Arte. Digo apenas que a música cristã deve ser distintiva no sentido de, aos não crentes, apresentar uma mensagem clara do evangelho e, aos crentes, apresentar uma mensagem clara de testemunho e edificação.
Nesses termos, o coro de Arde Outra Vez é um disparate: “Me molha, me lava, me ensina | Me inspira e Arde Outra Vez | No meu coração”. Na última repetição, ouvimos “e Arde Outra Vez com fogo, com fogo, me molha, me lava”. Pra finalizar, há uma referência alegórica à glória da “segunda casa” (uma provável alusão à Ag 2.9) e uma palavra dirigida ao Espírito Santo de Deus. Uma mescla disparatada de ideias; termos amontoados sem pé nem cabeça. Alguns podem chamar isso de “linguagem de adoração”, mas, no fundo, isso não passa de letra teologicamente pobre. O crente termina de cantar molhado e ardido, mas nem um pouco bíblica e solidamente edificado.
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