Qual é o peso que a Bíblia concede às decisões humanas? O homem, diante de Deus e na sua interação com as outras pessoas e com a natureza, é um agente livre? Na intrincada engrenagem da existência o ser humano pode ser responsabilizado por suas escolhas ou é um mero fantoche de um deus caprichoso, do destino impessoal ou do acaso? Tais questões têm ocupado as mentes de filósofos, teólogos e pessoas inquiridoras, desde os primórdios da humanidade.
1. A necessidade da vontade livre
Certa vez perguntaram a Isaac Bashevis Singer (1902 – 1991), escritor polonês, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, se ele acreditava em vontade livre. “Precisamos acreditar na vontade livre: não temos escolha” — foi sua resposta (MINTZBERG; AHLSTRAND & LAMPEL, 2000, p. 210).
A razão exige a crença na capacidade humana de escolha, não apenas para justificar as preferências pessoais aparentemente neutras, tais como o estilo de vestuário ou a cor do carro, mas porque sem isso a ética é impensável. Se eu não puder fazer escolhas entre o bem e o mal, o certo e o errado, não posso ser responsabilizado pelos meus atos. Sem a possibilidade de escolher, eu deixo de ser um agente moral.
Pior: Sem a possibilidade de escolher entre o bem e o mal, tornam-se ilógicas as admoestações e advertências da Escritura quanto à conversão e vida santa. Cai por terra também a revelação bíblica sobre o Dia do Juízo. Uma vez que a Bíblia ensina que Deus julgará cada ser humano utilizando o critério das obras, como fazer isso se os homens não são capazes de fazer escolhas morais, e portanto, não são pessoalmente responsáveis pelas más obras que cometem?
O Cristianismo ensina que o homem é um ser moral, responsável por suas escolhas e atos, diante do próximo (da sociedade) e de Deus. Isso precisa ser afirmado para fazer calar aqueles que interpretam de forma inadequada a depravação total e a eleição. Estes dizem que o homem decaído, por ser escravo do pecado e inevitavelmente programado para a transgressão, não tem opção moral. Tal afirmação absurda, levada às suas últimas conseqüências, produziria o completo caos social.
2. A vontade humana e a salvação
Como a Bíblia aborda esse assunto? Se o homem é um ser moral, em que medida ele possui liberdade de escolha? Quais são os limites desta liberdade? Trata-se de liberdade apenas funcional e moral, ou também espiritual? Todas essas perguntas exigem respostas seguras.
2.1. Salvação potencial ou absolutamente certa
Essa questão parece ainda mais complicada ao analisarmos uma palavra do apóstolo Paulo:
Fiel é a palavra e digna de toda aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal. 1Timóteo 1.15 (grifo nosso).
Paulo fala sobre a finalidade da vinda de Cristo ao mundo: Ele veio “para salvar os pecadores”. Acerca desta declaração não há dúvidas entre os cristãos. O problema surge a partir da próxima indagação: Cristo traz salvação potencial ou absolutamente certa? Isso tem relação com as questões anteriores, daí a necessidade de uma explicação.
Um rapaz que tem o potencial de ser tornar um cantor pode ou não assumir uma carreira artística. Aquilo que é potencial indica sempre possibilidade e não necessariamente realização. Nesse sentido, se eu digo que Cristo oferece uma salvação que pode ou não ser desfrutada, isso equivale a dizer que a obra de Cristo é meramente potencial: Ele veio ao mundo para salvar, por exemplo, o Misael, mas talvez o Misael não seja salvo. E o que definiria a salvação do Misael? A vontade do Misael. Se Misael escolher Cristo ele será salvo, se não, será condenado. Eis o vínculo entre as questões da salvação trazida por Cristo e a vontade livre.
O problema da crença na salvação potencial é que ela abre espaço para sérias conclusões:
- Primeiro, se Cristo trouxer uma salvação apenas potencial não apenas há a possibilidade lógica de somente uns poucos serem salvos, mas também de ninguém ser salvo.
- Segundo, se Cristo quiser salvar uma pessoa — e tiver vindo ao mundo para isso — e esta pessoa não decidir-se por Cristo, então a intenção de Cristo para com aquela pessoa foi frustrada. Frustração é, por definição, o “estado daquele que, pela ausência de um objeto ou por um obstáculo externo ou interno, é privado da satisfação dum desejo ou duma necessidade” (Dicionário Aurélio).Se aceitarmos a possibilidade de Cristo ser frustrado em seus desígnios, caem por terra as idéias bíblicas sobre o governo, sabedoria e onipotência de Deus.
- Terceiro, se a obra de Cristo for apenas potencial, conclui-se que a salvação ocorre por sinergismo, ou seja, a cooperação entre a graça de Deus e a vontade humana.
A Bíblia afirma que Deus salvará todos os seus eleitos, que Cristo cumpriu plenamente o propósito divino, que o Deus onipotente e onisciente governa sobre tudo e que, por fim, a redenção ocorre por monergismo, ou seja, é ação exclusiva de Deus, dispensada aos crentes pela graça mediante a fé, não vem de nós, para que não nos orgulhemos (Jo 10.14-16; Ef 1.3-12; Rm 9.6-29; Ef 2.8-9).
Se eu afirmo que Cristo veio ao mundo para salvar o Misael e que, de fato, o Misael é salvo por Cristo, então a salvação oferecida por Cristoé absolutamente certa, ou seja, a asserção paulina, de que “Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores”, significa que ele veio salvar um número específico de pessoas — número esse que somente ele sabe qual é — e que, efetivamente, ele as salva.
2.2. O modo como Deus interage com a vontade humana na salvação
Os textos da Escritura, notadamente do Novo Testamento, apresentam um paradoxo. Primeiro eles revelam que todo ser humano possui uma vontade livre, e, por isso, é moralmente responsável por suas escolhas. Os homens são exortados a arrepender-se e crer, bem como há afirmações de que os que rejeitarem o evangelho serão condenados no Dia do Juízo (Cf. Rm 1.18-3.20; Ap 20.11-13). Por outro lado, somos informados de que, na efetivação da salvação, Deus não depende da vontade humana (Jo 1.13; Fp 1.6, 2.13). A vontade humana, biblicamente falando, está corrompida, escravizada ao pecado e, do ponto de vista espiritual, “morta”, de modo que o homem não consegue crer em Cristo para a salvação (1Co 2.14; 2Co 4.3-4; Ef 2.1-3). A salvação é um ato exclusivo de Deus.
Ora, se isso é assim, porque Deus me exorta a converter-me, me arrepender e crer? Será que tais convites são um mero blefe? Mais: Qual é a relação disso tudo com a morte e ressurreição de Cristo?
No Hino 113 do Hinário Novo Cântico encontramos estas linhas: “Achei um bom amigo, Jesus, o Salvador, dos milhares o escolhido para mim”. O termo “achei” possui significado óbvio: A alma cansada enxergou em Cristo a luz, a purificação, a consolação, a proteção e o alívio perfeito. Então ela o escolheu, ela o “achou” e ela o recebeu (Cf. Jo 1.12).
Eis o evangelho. No anúncio das boas-novas temos a oportunidade de olharmos para Cristo, sermos iluminados e libertos da vergonha (Sl 34.5):
Oh! Olhai, com fé olhai!
Sim, olhai só a Jesus!
Ele salva o pecador, Aleluia!
Sim, salva a quem confiante olhar!
Hino 198, Hinário Novo Cântico.
Visto por esse ângulo, a proclamação da mensagem sobre Jesus é um chamado à escolha: “Aceitai a salvação, Aleluia! Segui os passos do Senhor!” (Cf. mesmo hino). No evangelho Deus apela indubitavelmente à vontade humana. Ouvimos a notícia sobre Jesus, concordamos com ela do fundo de nosso coração e dizemos “sim” ao Senhor. Nesse processo não somos forçados ou constrangidos, mas cumpre-se em nós a promessa de Jeremias: “Com amor eterno eu te amei; por isso, com benignidade te atraí” (Jr 31.3). Cristo vem a nós oferecendo-se como vida.
Nesse processo, Cristo torna-se o escolhido dos escolhidos. Disse Jesus: “[…] ninguém poderá vir a mim, se, pelo Pai, não lhe for concedido” (Jo 6.65). O resultado de uma pregação de Paulo e Barnabé foi assim descrito pelo historiador Lucas: “[…] e creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna” (At 13.48), e bem arrematou o apóstolo: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo, assim como nos escolheu, nele, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele […]” (Ef 1.3-4).
Mais: estes escolhidos são regenerados pelo Espírito Santo (1Pe 1.3-4). Nas palavras de Jesus eles “nascem de novo” ou, como diz Paulo, eles são “ressuscitados” espiritualmente (Jo 3.3-10; Ef 2.4-9; Cl 3.1). Assim sendo, recebem o “poder” de crer, de “receber” a Cristo como Salvador e Senhor de suas vidas (Jo 1.11-13).
Não estamos diante de um mero jogo de palavras. Aqueles que, hoje, recebem ao Senhor, são os que, na eternidade, foram por ele separados para a salvação. Antes de existirmos Deus nos escolheu, por isso, agora somos capacitados pela graça a escolher a Cristo. Nossa livre escolha da salvação é um efeito da causa primeira: a escolha divina.
Repassemos o ensino:
- Cristo traz salvação absolutamente certa. Serão, de fato, salvos, todos por quem Cristo morreu e ressuscitou.
- É salvo quem atende ao chamado da Palavra de Deus: Todo aquele que crê no Redentor tem a vida eterna. Este é um convite solene e digno de crédito. Deus apela à vontade humana que, regenerada pelo Espírito, responde livremente. Cabe a nós dizermos “sim” ou “não” a esta oferta.
- Na salvação não é o homem que, com sua fé, colabora com Deus. Deus é quem, por graça, concede ao homem a capacidade de crer para a salvação. Isso se chama monergismo — Deus é a fonte de toda boa dádiva, inclusive da fé. Nossa opção por Cristo é resultado de uma operação do amor de Deus em nós. Ele nos dá vida e capacidade de fazer essa escolha. Ao fazer isso ele confirma nossa eleição.
3. A salada conceitual
Vontade livre é sinônimo de livre-arbítrio? Os leitores atentos perceberão que iniciei esta reflexão afirmando que, como ser moral, o homem precisa ter liberdade de escolha. Em seguida eu disse que, quanto à salvação, o homem não possui em si mesmo a capacidade de crer em Cristo — que a fé salvadora é um dom divino.
Aqueles verdadeiramente presos aos detalhes notaram que, apesar da pergunta do título, “o homem possui livre-arbítrio?” até o momento, dentro do texto, eu deliberadamente não usei a expressão “livre arbítrio”. Falei de “decisões humanas”, “vontade livre”, sobre o fato de o homem ser um “agente livre” e sobre as “escolhas” funcionais e morais. Eu me referi a “liberdade de escolha” e à capacidade de receber, escolher ou crer em Cristo para ser salvo. Em nenhum parágrafo usei a expressão “livre-arbítrio” e chegou o momento de explicar isso.
De modo geral nos confundimos ao falar sobre o livre-arbítrio. Essa confusão decorre daquilo que denomino salada conceitual. Sob o guarda-chuva conceitual do livre-arbítrio é comum colocar todo tipo de escolha humana. De acordo com essa noção popular eu utilizo o livre-arbítrio para:
- escolher a marca dos alimentos no supermercado;
- escolher o meu cônjuge;
- decidir sobre o tamanho, a marca e o modelo do carro a ser adquirido;
- optar por uma religião, ou
- decidir seguir a lei quando estou diante de um sinal vermelho em uma rua deserta.
Todas essas decisões são possíveis, dizem, porque, afinal de contas, “temos livre-arbítrio”. Como veremos a seguir, nenhuma dessas decisões se relacionam com o livre-arbítrio.
3.1. Três ensinos da Bíblia sobre a vontade humana
Pra começar, admitamos que a expressão “livre-arbítrio” não se encontra na Bíblia. Ela foi usada pela Igreja desde os primeiros séculos, destacando-se, principalmente, a partir dos escritos de Agostinho. O uso do termo foi derivado da Filosofia e não do Antigo ou Novo Testamentos.
Não estou com isso afirmando que a Bíblia não diz nada sobre o livre-arbítrio. Reconheço que a própria Confissão de Fé de Westminster refere-se ao ensino bíblico sobre a vontade humana utilizando o título Do Livre-Arbítrio (Cap. IX). Apenas me reservo a apresentar um resumo do que a Escritura diz sobre a vontade humana, nos seguintes termos:
- Na criação o homem podia desobedecer ou obedecer.
- Após a queda, por um lado, o homem manteve a aptidão de tomar decisões necessárias à sua manutenção, desenvolvimento e prestação de contas diante da sociedade e de Deus, mas, por outro, todas as suas obras são manchadas pelo pecado e foi perdida a capacidade de escolher a Deus para sua salvação. Aliás, falando em pecado, o homem não-regenerado é um escravo.
- O cristão regenerado pode buscar ao Senhor, amá-lo, adorá-lo e cumprir voluntariamente suas ordenanças. A completa santificação da vontade humana ocorrerá na glorificação.
3.2. Sobre a livre agência
Retornando aos exemplos mencionados na seção anterior, escolher a marca do macarrão, assumir o pacto conjugal, decidir sobre o tamanho, marca e modelo do carro ou obedecer ao sinal vermelho em uma rua deserta, são ações funcionais e morais que ocorrem dentro de um contexto intrincado onde são levadas em conta as inclinações naturais, as influências da cultura e os valores sociais.
Ao parar diante de uma gôndola no supermercado, o subconsciente dispara a sugestão de uma nova marca de talharim mostrada na preparação de uma receita no programa Mais Você. O adolescente diz que precisa do MP3 player igual aos que seus colegas têm. A moça sente que aquele rapaz atende às suas expectativas de companheiro para a vida toda. O novo carro da família é vermelho porque essa é a cor preferida da esposa, é um utilitário porque o maridão se sente másculo dirigindo um veículo parrudo — além de que os colegas do escritório compraram carros parecidos —, e possui DVD player porque as meninas que viajam no banco de trás gostam de assistir High School Musical e Encantada.
Eis o conceito: livre agência é a possibilidade de assumir responsabilidade pelas escolhas necessárias à vida comum, tomar decisões e agir a partir delas, arcando pessoal e socialmente com as suas conseqüências.
Observe que a livre agência é sempre condicionada. Os psicólogos dizem que nossos sentimentos, atitudes e comportamentos refletem condições interiores — nossas inclinações. Os profissionais de propaganda e marketing sabem que determinados métodos têm maior probabilidade de acionar respostas dos consumidores, de modo que estes comprem produtos ou serviços. O consumidor pensa que está decidindo livremente quando, na verdade, está respondendo exatamente àquilo que foi proposto pelos peritos de comunicação.
Isso não é livre-arbítrio, mas livre agência. Isso toda pessoa mentalmente saudável tem. Isso é confundido com livre-arbítrio, mas, devemos separar bem as coisas, a fim de evitar confusão. Lembro-me de um pregador televisivo que, no fervor de seu discurso, afirmou que a Bíblia ensina que o homem possui livre-arbítrio. A grande prova disso, afirmou aquele pastor com ares de sábio, é que, no estacionamento da Igreja em que ele pregava haviam vários carros, todos de cores e modelos diferentes. Se não existisse livre-arbítrio as pessoas seriam forçadas a comprar o mesmo modelo e cor de carro. Esse é um argumento superficial e infantil.
3.3. O livre-arbítrio no âmbito da Teologia
Nas discussões da Teologia, livre-arbítrio é a capacidade de escolher Deus e a salvação. Agostinho lidou com essa questão ao rebater os ensinos de Pelágio, no quinto século. Onze séculos depois o assunto foi abordado por Lutero em seu debate contra Erasmo, e por João Calvino, em suas Institutas da Religião Cristã. No século XVII Armínio defendeu que o homem possui livre-arbítrio nesse sentido teológico. Um concílio foi convocado para a cidade de Dordrecht, na Holanda e, na ocasião, a partir do exame cuidadoso das Escrituras, concluiu-se que o estudo adequado dos textos revela que, definitivamente, o homem não possui essa aptidão para crer em Deus à parte da graça divina. Os documentos de Westminster (Breve Catecismo, Catecismo Maior e Confissão de Fé), produzidos por mais de uma centena dos melhores teólogos da Europa, assim como outras confissões importantes daquele período, concordaram unanimemente com os cânones de Dordrecht.
O livre-arbítrio no âmbito da Filosofia
Do ponto de vista filosófico, livre-arbítrio é a “possibilidade de exercer um poder sem outro motivo que não a existência mesma desse poder” (Dicionário Aurélio). Isso é também chamado de livre-alvedrio ou “liberdade de indiferença” (Ibid). Nesses termos o livre-arbítrio corresponde à chamada “liberdade libertária.”
Dadas as opções A e B, pode-se praticamente escolher qualquer uma das duas; não existe qualquer circunstância que seja suficiente para determinar a escolha: a escolha compete ao indivíduo, e, caso ele opte por uma delas, poderia ter feito de outra forma, ou pelo menos poderia ter se abstido de não fazer nada. O indivíduo atua como um agente que é o supremo criador das próprias ações, e, nesse sentido, ele controla a ação. (MORELAND & CRAIG, 2005, p. 300).
Filosoficamente, exercer o livre-arbítrio equivale a tomar uma decisão ou seguir um rumo de ação sem ser influenciado nem pelas inclinações do coração nem pelas sugestões da cultura ou sociedade. Significa agir de maneira completamente autônoma e autodeterminante.
Considerando esse conceito de livre-arbítrio, conclui-se que o livre-arbítrio é uma possibilidade apenas filosófica. O homem nunca o possuiu, nem antes nem depois da queda. Antes da queda, Adão podia obedecer ou desobedecer a Deus, mas, isso equivalia a submeter-se ao Criador ou à serpente. Ele não era, de fato, autodeterminante — sempre esteve em jogo a submissão a alguém. Após a queda, a escravidão ao mundo, ao pecado e ao diabo é abolida quando o discípulo coloca-se sob a liderança divina por meio de Cristo. Sempre há uma influência externa envolvida.
Em suma, o ser humano, quanto ao exercício de sua vontade, é sempre um ser dependente.
3.5. Obstáculos à evangelização
Quando interagimos com um não-crente, normalmente ocorre um diálogo de surdos. Ao falarmos sobre a vontade humana usando a expressão “livre arbítrio”, imaginamos que estamos sendo compreendidos, mas pode ocorrer o contrário. Lembre-se de que “livre-arbítrio” pode ser entendido como livre-agência (mentalidade popular), capacidade de escolher Deus e a salvação (ponto de vista teológico) ou habilidade para tomar decisões absolutamente autônomas (perspectiva filosófica). Nosso interlocutor nos responde a partir de seu ponto de vista, e, muitas vezes, há confusão.
Proponho, no entanto, que sejamos cuidadosos ao usar as palavras. Busquemos, nesse ponto, a exatidão, principalmente por causa do desafio da evangelização.
Imagine uma conversa com alguém que abraça o pensamento popular. Todas as vezes que você pronunciar a expressão “livre-arbítrio” ele entenderá com isso aquelas coisas que, de fato, dizem respeito à livre agência. Quando você disser que, a partir da queda, o homem “perdeu” o livre-arbítrio, seu interlocutor argumentará que isso é absurdo, que ele pode tomar decisões funcionais e morais. O não-regenerado pode dar as costas ao evangelho por compreender que crer em Cristo equivale a assumir o determinismo. Trunca-se a comunicação.
Pense agora em uma discussão com alguém que possui conhecimento filosófico. Ao dizer para essa pessoa que Adão possuía livre-arbítrio antes de pecar, você dá a entender que antes da queda Adão era autodeterminante, nas palavras de Moreland e Craig, “supremo criador das próprias ações” ou aquele que, no Éden, controlava a ação. Se, para piorar a situação, você der a entender que, na glorificação, o que foi perdido no Éden será restaurado, isso equivalerá a afirmar que seremos eternamente autodeterminantes. Sua “versão” do evangelho soará como um discurso de autodivinização. Seu esforço evangelístico escorrerá pelo ralo.
Daí minha sugestão de uso mais cuidadoso dos termos. Antes de levar adiante seu argumento evangelístico-doutrinário, deixe claro para seu interlocutor o que você quer dizer ao usar a expressão “livre-arbítrio”. Pra ser sincero, penso que o ideal é não usar a expressão. Fica melhor prender-se ao vocabulário bíblico mesmo. Diga que Deus criou Adão e Eva perfeitos, conforme sua imagem, a fim de viverem com ele em aliança. Diga, ainda, que Adão podia obedecer a Deus ou não e que, após a queda, o homem tornou-se escravo do diabo e do pecado. Afirme que Cristo veio ao mundo para resgatar o homem desse estado e torná-lo novamente livre. Explique que, depois de sermos regenerados, inicia-se um processo de santificação, ou seja, vamos aprendendo, dia após dia, a obedecer a Deus. Declare com alegria que seremos plenamente aperfeiçoados quando nos encontrarmos com Cristo, na glorificação. Se, nesse meio tempo, seu interlocutor falar sobre livre-arbítrio, pergunte a ele o que ele entende, de fato, com essa expressão. Depois de compreender bem o que ele quer dizer, explique as diferenças entre livre agência, e livre arbítrio do ponto de vista da Teologia e, por fim, da Filosofia. Na dependência do Espírito Santo, ajude-o a entender que somos seres abençoados com uma vontade que traduz nossa capacidade administrativa e responsabilidade moral. Diga a ele que fomos criados para amar e depender de Deus e que, a despeito do pecado, Cristo nos salva a fim de desfrutarmos da felicidade de conhecê-lo e servi-lo eternamente.
Conclusão
Há pessoas que argumentam mais ou menos assim: “Eu não sou uma máquina. Eu sou livre. Por isso rejeito o Cristianismo. Tenho a liberdade para dizer não à fé cristã, pois possuo livre-arbítrio”. Pois bem, esse tipo de argumentação apenas reforça aquilo que estou expondo. Tal indivíduo possui livre agência e sua rejeição do Cristianismo apenas reforça que ele não tem livre-arbítrio. Ao dizer “não” à fé ele faz o que lhe é natural, pois é decaído, morto e escravo do pecado. Para crer ele precisa ser tocado pelo milagre da regeneração.
Depois de experimentar o novo nascimento, o cristão convertido inicia um processo de santificação da vontade. A culminância desse processo é a glorificação, quando ele será semelhante — em termos de caráter santo e não de essência — a Cristo. Na glória os salvos serão eternamente obedientes a Deus e dele dependentes.
Repito: Do ponto de vista filosófico e teológico, o livre-arbítrio é apenas uma abstração: ele existe como conceito, mas, não como realidade. Podemos imaginá-lo, mas, não praticá-lo. Uma avaliação profunda e honesta de cada pensamento, decisão e ação, revela que nunca agimos absolutamente livres — sempre somos influenciados por desejos, temores ou sugestões externas. Até mesmo depois de convertidos, o desafio da santidade é alinharmos nossas vontades à vontade divina, que é uma influência externa a nós, apesar de Deus o Espírito Santo habitar em nossos corações.
Possuímos livre agência. Não possuímos o livre-arbítrio no sentido de liberdade absoluta. Como seguidores de Jesus, nossas vontades estão sendo transformadas gradativamente, de modo a se tornarem obedientes à vontade de Deus.
Agrada-me fazer a tua vontade, ó Deus meu; dentro do meu oração, está a tua lei
(Salmo 40.8).
Referências bibliográficas
MARRA, Cláudio A. B. (Ed.). Novo cântico. 1ed. Com glossário e novo formato. Cultura Cristã: São Paulo, 2003.
MINTZBERG, Henry; AHLSTRAND, Bruce; LAMPEL, Joseph. Safári de estratégia: Um roteiro pela selva do planejamento estratégico. Porto Alegre: Bookman, 2000.
MORELAND, J. P.; CRAIG, William Lane. Filosofia e cosmovisão cristã. São Paulo: Vida Nova, 2005.
Leituras recomendadas
CRAMPTON, W. Gary. Uma teodicéia bíblica. Monergismo. Disponível em: http://www.monergismo.com/textos/problema_do_mal/teodiceia_gary.htm. Acesso em: 08 Jan 2008.
REYMOND, Robert L. O decreto eterno de Deus. Monergismo. Disponível em: http://www.monergismo.com/textos/predestinacao/decreto_eterno_reymond.htm. Acesso em: 08 Jan 2008.
SILVA FILHO, Waldemar Alves da. Livre-arbítrio: Afinal, temos ou não temos? Portal da IPB. Disponível em: http://www.ipb.org.br/artigos/artigo_inteligente.php3?id=49. Acesso em: 08 Jan 2008.
SOUTO, Bento. Livre-arbítrio: Algumas considerações. Monergismo. Disponível em: http://www.monergismo.com/textos/livre_arbitrio/livrearbitrio_bento.htm. Acesso em: 10 Abr 2008.
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