Sobre a vontade livre

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Qual é o peso que a Bíblia concede às decisões humanas? Diante de Deus e na sua interação com as outras pessoas e com a natureza, o homem é um agente livre? Na intrincada engrenagem da existência, o ser humano pode ser responsabilizado por suas escolhas ou é mero fantoche de uma divindade caprichosa, do destino impessoal ou do acaso? Tais questões ocupam as mentes de filósofos, teólogos e pessoas inquiridoras, desde os primórdios da humanidade.

1. A necessidade da vontade livre

Certa vez perguntaram a Isaac Bashevis Singer (1902 – 1991), escritor polonês, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, se ele acreditava em vontade livre. “Precisamos acreditar na vontade livre: não temos escolha” — foi sua resposta.[1]

A razão exige a crença na capacidade humana de escolha, não apenas para justificar as preferências pessoais aparentemente neutras, tais como o estilo de vestuário ou a cor do carro, mas porque sem isso a ética é impensável. Se eu não puder fazer escolhas entre o bem e o mal, o certo e o errado, não posso ser responsabilizado pelos meus atos. Sem a possibilidade de escolher, eu deixo de ser um agente moral.[2] Pior: Sem a possibilidade de escolher entre o bem e o mal, tornam-se ilógicas as admoestações e advertências da Escritura quanto à conversão e vida santa. Cai por terra também a revelação bíblica sobre o Juízo Final. Uma vez que a Bíblia ensina que Deus julgará cada ser humano utilizando o critério das obras (cf. Ap 20.11-13), como implementar isso se os homens forem incapazes de escolhas morais, e portanto, inimputáveis pelas más ações que cometeram?

A Bíblia ensina que o homem é responsável por suas escolhas e atos, diante do próximo e de Deus (Gn 2.16-17; Jo 5.29; 2Co 5.10). Isso precisa ser afirmado, pois alguns não articulam adequadamente o ensino bíblico sobre depravação total e eleição, dando a entender que, em razão da Queda, o homem não possui qualquer condição de agir e, por conseguinte, responder como ser moral — uma impropriedade ética e espiritual.

2. A vontade humana e a salvação

Como a Bíblia aborda esse assunto? Se o homem é um ser moral, em que medida ele possui liberdade de escolha? Quais são os limites desta liberdade? Trata-se de liberdade apenas administrativa e moral, ou também espiritual? Essas perguntas exigem respostas seguras.

2.1. Salvação potencial ou absolutamente certa

Escrevendo a Timóteo, o apóstolo Paulo fala sobre a salvação que Cristo assegura aos pecadores.

Fiel é a palavra e digna de toda aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal (1Tm 1.15).

Paulo fala sobre a finalidade da vinda de Jesus ao mundo. Ele veio “salvar os pecadores” e acerca desta declaração, não há debate entre os cristãos. O problema surge a partir da indagação: Cristo traz salvação potencial ou absolutamente certa? Isso tem relação com a questão da vontade livre, daí a necessidade de uma explicação.

Um rapaz que tem o potencial de ser tornar um cantor pode ou não assumir uma carreira artística. Potencial indica possibilidade, não necessariamente realização. Nesse sentido, se eu digo que Cristo oferece uma salvação que pode ou não ser desfrutada, isso equivale a dizer que a obra de Cristo é meramente potencial. Ele veio ao mundo para salvar, por exemplo, o Misael, mas talvez o Misael não seja salvo. E o que definiria a salvação do Misael? A vontade do Misael. Se Misael escolher Cristo ele será salvo, se não, será condenado. Eis o vínculo entre a salvação trazida por Cristo e a vontade livre.

O problema da crença na salvação potencial é que ela abre espaço para conclusões contrárias à Bíblia:

  • Primeiro, se Cristo trouxer uma salvação apenas potencial, não apenas há a possibilidade lógica de somente uns poucos serem salvos, mas também de ninguém ser salvo.
  • Segundo, se Cristo quiser salvar uma pessoa, mas esta não se decidir por ele, a intenção de Cristo para com aquela pessoa foi frustrada. Frustração é, por definição, o “estado daquele que, pela ausência de um objeto ou por um obstáculo externo ou interno, é privado da satisfação dum desejo ou duma necessidade”.[3] A aceitação desta possibilidade bate de frente com a doutrina bíblica sobre a onipotência, sabedoria e governo de Deus.
  • Terceiro, se a obra de Cristo for apenas potencial, a salvação ocorre por sinergismo, ou seja, a cooperação entre a graça de Deus e a vontade humana.

Contrária a tudo isso, a Bíblia afirma que Deus salvará todos os seus escolhidos, que Cristo cumpriu plenamente o propósito divino, que o Deus onipotente governa sobre tudo e que, por fim, a redenção ocorre por monergismo, ou seja, é ação exclusiva de Deus, dispensada aos crentes pela graça mediante a fé, não vem de nós, para que não nos orgulhemos (Jo 10.14-16; Rm 9.6-29; Ef 1.3-12; 2.8-9).

Se eu afirmo que Cristo veio ao mundo para salvar o Misael e que, de fato, o Misael é salvo por Cristo, então a salvação oferecida por Cristo é absolutamente certa, ou seja, a asserção paulina, de que “Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores”, significa que ele veio salvar um número específico de pessoas, número este que somente ele sabe qual é e que, efetivamente, ele as salva (2Tm 2.19-20).

2.2. O modo como Deus interage com a vontade humana na salvação

Os textos do Novo Testamento apresentam um paradoxo. Primeiro, eles revelam que todo ser humano possui capacidade de deliberar e agir conforme esta deliberação, por isso, é moralmente responsável por suas escolhas. O homem é exortado a arrepender-se e crer, bem como há afirmações de que os que rejeitarem o evangelho serão condenados (Rm 1.18-3.20; Ap 20.11-13). Por outro lado, somos informados de que, na efetivação da salvação, Deus não depende da vontade humana (Jo 1.13; Fp 1.6, 2.13). Biblicamente falando, a vontade humana está corrompida, escravizada ao pecado e, do ponto de vista espiritual, “morta”, de modo que o homem não consegue crer em Cristo para a salvação (1Co 2.14; 2Co 4.3-4; Ef 2.1-3). Destarte, a salvação é um ato exclusivo de Deus.

Ora, se isso é assim, por que Deus me exorta à conversão, arrependimento e fé? Tais convites são algum tipo de blefe? Mais: Qual é a relação disso tudo com a morte e ressurreição de Cristo?

No Hino 113 do Novo Cântico, encontramos estas linhas:

Achei um bom amigo, Jesus, o Salvador,
dos milhares o escolhido para mim.[4]

O termo “achei” possui significado óbvio: a alma cansada enxergou em Cristo a luz, a purificação, a consolação, a proteção e o alívio. Então, ela o escolheu, ela o “achou” e o “recebeu” (Jo 1.12).

Eis o evangelho! No anúncio das salvação, somos convidados a olhar para Cristo e receber iluminação e libertação da vergonha (Sl 34.5):

Oh! Olhai, com fé olhai!
Sim, olhai só a Jesus!
Ele salva o pecador, Aleluia!
Sim, salva a quem confiante olhar![5]

Vista por esse ângulo, a proclamação da mensagem sobre Jesus é um chamado à escolha:

Aceitai a salvação, Aleluia!
Segui os passos do Senhor![6]

No evangelho, Deus apela indubitavelmente à vontade humana. Ouvimos a notícia sobre Jesus, concordamos com ela do fundo de nosso coração e dizemos “sim” ao Senhor. Nesse processo, não somos forçados ou constrangidos, mas cumpre-se em nós a promessa de Jeremias: “Com amor eterno eu te amei; por isso, com benignidade te atraí” (Jr 31.3). Cristo vem a nós oferecendo-se como vida e se torna o escolhido dos escolhidos, tal como afirmou em João 6.65:

[…] ninguém poderá vir a mim, se, pelo Pai, não lhe for concedido.

O resultado de uma pregação de Paulo e Barnabé foi assim descrito pelo historiador Lucas: “[…] e creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna” (At 13.48), e bem arrematou o apóstolo:

Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo, assim como nos escolheu, nele, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele […] (Ef 1.3-4).

Mais: estes escolhidos são regenerados pelo Espírito Santo (1Pe 1.3-4). Nas palavras de Jesus eles “nascem de novo” ou, como diz Paulo, eles são “ressuscitados” espiritualmente (Jo 3.3-10; Ef 2.4-9; Cl 3.1). Assim sendo, recebem o “poder” de crer, de “receber” a Cristo como Salvador e Senhor de suas vidas (Jo 1.11-13).

Não estamos diante de um mero jogo de palavras. Aqueles que, hoje, recebem ao Senhor, são os que, na eternidade, foram por ele separados para a salvação. Deus nos escolheu antes de nascermos neste mundo; por isso, recebemos graça para escolher e acolher a Cristo. Nossa escolha da salvação é um efeito da causa primeira, a escolha divina.

Repassemos o ensino:

  • Cristo traz salvação absolutamente certa. Serão salvos todos por quem ele morreu e ressuscitou.
  • É salvo quem atende ao chamado da Palavra de Deus. Todo aquele que crê no Redentor tem a vida eterna. O evangelho é um convite solene e digno de crédito. Deus apela à consciência e vontade humanas que, regeneradas pelo Espírito, respondem livremente.
  • Na salvação, não é o homem que, com sua fé, colabora com Deus. Deus é quem, por graça, concede ao homem a capacidade de crer para a salvação (Ef 2.8). Isso se chama monergismo. Deus é a fonte de toda boa dádiva, inclusive da fé. Nossa opção por Cristo é resultado de uma operação do amor de Deus em nós. Ele nos dá vida e capacidade de fazer essa escolha. Ao fazer isso, ele confirma nossa eleição.

3. A confusão acerca do livre-arbítrio

Vontade livre é sinônimo de livre-arbítrio? Os leitores atentos perceberão que iniciei este post afirmando que, como ser moral, o homem precisa ter liberdade de escolha. Em seguida eu disse que, quanto à salvação, o homem não possui em si mesmo a capacidade de crer em Cristo — que a fé salvadora é um dom divino.

Aqueles verdadeiramente presos aos detalhes notaram que, até o momento, eu deliberadamente não usei a expressão “livre-arbítrio”. Falei de “decisões humanas”, “vontade livre”, sobre o fato de o homem ser um “agente livre” e sobre as “escolhas” administrativas e morais. Eu me referi a “liberdade de escolha” e à capacidade de receber, escolher ou crer em Cristo para ser salvo.

Procedi assim porque, popular e erroneamente, a palavra “livre-arbítrio” é usada para descrever todo tipo de escolha humana. De acordo com essa noção, utilizamos o livre-arbítrio para:

  1. escolher a marca dos alimentos no supermercado;
  2. escolher nosso cônjuge;
  3. decidir sobre o tamanho, a marca e o modelo do carro a ser adquirido;
  4. optar por uma religião, ou
  5. decidir seguir a lei quando estamos diante de um sinal vermelho, em uma rua deserta.

Todas essas deliberações são possíveis, dizem, porque, afinal de contas, temos livre-arbítrio. Como veremos a seguir, nenhuma dessas decisões se relacionam com o livre-arbítrio.

3.1. Três ensinos da Bíblia sobre a vontade humana

A expressão “livre-arbítrio” não se encontra na Bíblia. Ela foi usada pela Igreja desde os primeiros séculos, destacando-se, principalmente, a partir dos escritos de Agostinho. O uso do termo foi derivado da Filosofia e não do Antigo ou Novo Testamentos.

Com isso, não estou afirmando que a Bíblia não diz nada sobre o livre-arbítrio. Pelo contrário, admito que a própria Confissão de Fé de Westminster refere-se ao ensino bíblico sobre a vontade humana utilizando o título Do Livre-Arbítrio (Cap. IX). Apenas me reservo a apresentar um resumo do que a Escritura diz sobre a vontade humana, nos seguintes termos:

  1. Na criação, o homem podia desobedecer ou obedecer.
  2. Após a queda, o homem manteve a aptidão de tomar decisões administrativas e morais, mas perdeu a capacidade de escolher a Deus para sua salvação. É nesse sentido que o ser humano sem Cristo é um “escravo” (Jo 8.34-36; Ef 2.1-7).
  3. Só depois de regenerado pelo Espírito Santo é que o cristão pode buscar ao Senhor, amá-lo e obedecê-lo. A completa santificação da vontade humana, ocorrerá na glorificação.

3.2. Sobre a livre agência

De acordo com Louis Berkhof, o ser humano possui livre agência:

O homem é um agente livre, com capacidade de autodeterminação racional. Ele pode refletir sobre uma inteligente escolha de certos fins, e também pode determinar sua ação com respeito a eles.[7]

Retornando aos exemplos mencionados, escolher a marca do macarrão, assumir o pacto conjugal, decidir sobre o tamanho, marca e modelo do carro ou obedecer ao sinal vermelho em uma rua deserta, são ações administrativas e morais que ocorrem dentro de um contexto intrincado, onde são levadas em conta as inclinações naturais, as influências da cultura e os valores sociais.

Ao parar diante de uma marca de massa, num site ou supermercado, a mente dispara a sugestão daquela live do chef de cozinha influenciador. O adolescente sente que precisa daquele novo dispositivo eletrônico, igual ao de seus colegas de escola, assim como a jovem é tomada por convicção, de aquele rapaz é o companheiro para a vida toda. O carro da família é da cor preferida da esposa, ou da marca e tipo desejados pelo marido, e possui recursos de conexão de última geração, porque os filhos gostam de viajar ouvindo playlists de seus smartphones.

Livre agência, ou como sugere Frame, liberdade compatibilista, é a possibilidade de assumir responsabilidade pelas escolhas necessárias à vida comum, tomar decisões e agir a partir delas, arcando pessoal e socialmente com as suas consequências.

Admitindo o oxímoro, a livre agência é sempre condicionada.[8] Os peritos em marketing digital sabem que determinados métodos acionam “engajamento”, quer dizer, respostas de concordância ou compra emocionais e imediatas. O usuário pensa que está “decidindo livremente” quando, na verdade, apenas obedece à manipulação implementada por algoritmos. Isso não é livre-arbítrio, mas livre agência, algo que toda pessoa mentalmente saudável tem. Isso é confundido com livre-arbítrio, mas devemos separar bem as coisas, a fim de evitar confusão.

Lembro-me de um pregador televisivo cujo nome não mencionarei (direi apenas que ostenta um bigode destacado) que, no fervor de sua pretensa pregação, afirmou que a Bíblia ensina que o homem possui livre-arbítrio. A grande prova disso, de acordo com ele, é que, no estacionamento de sua igreja haviam carros de cores e modelos diferentes. Se não existisse livre-arbítrio, concluiu, as pessoas comprariam a mesma marca, modelo e cor de carro. Em um argumento infantil, o referido pregador confundiu livre-arbítrio com livre agência.

3.3. Sobre o livre-arbítrio e a liberdade libertária

No âmbito da doutrina reformada, livre-arbítrio é a capacidade de escolher Deus e a salvação.[9] Agostinho lidou com essa questão ao rebater os ensinos de Pelágio, no século 5.[10] Onze séculos depois, o assunto foi abordado por Lutero em seu debate contra Erasmo,[11] e por João Calvino, em suas Institutas da Religião Cristã.[12]

No século 17, Armínio defendeu que o homem possui livre-arbítrio, como capacidade para escolher (ou rejeitar) Deus e sua salvação. Um concílio foi convocado para a cidade de Dort, na Holanda e, na ocasião, a partir do exame cuidadoso das Escrituras, concluiu-se que o estudo adequado dos textos revela que, definitivamente, o homem não possui essa aptidão para crer em Deus à parte da graça divina. Os documentos de Westminster (Breve Catecismo, Catecismo Maior e Confissão de Fé), produzidos por mais de uma centena dos melhores teólogos da Europa, assim como outras confissões importantes daquele período, concordaram unanimemente com os Cânones de Dort.[13]

Há outro ponto de vista, que é a compreensão de livre-arbítrio como a “possibilidade de exercer um poder sem outro motivo que não a existência mesma desse poder”.[14] Isso é também chamado de livre-alvedrio ou “liberdade de indiferença”.[15] Hodge a explica, como segue:

Às vezes é chamada de liberdade da indiferença; pelo que se pretende que a vontade, no momento da decisão, está situada espontaneamente entre os motivos em conflito, e se decide em um ou outro sentido não devido à maior influência de um motivo sobre o outro, mas devido ao fato de que é indiferente ou indeterminada, capaz de agir de acordo com o motivo mais débil contra o mais forte, ou mesmo sem motivo algum. Às vezes esta doutrina é expressa como “a capacidade autodeterminante da vontade”. Com isso pretende-se negar que a vontade é determinada por motivos e afirmar que a razão de suas decisões deve ser buscada nela mesma. É uma causa, e não um efeito, e por isso não precisa de nada fora de si mesma para explicar suas ações. Às vezes esta doutrina é chamada de capacidade de escolha contrária; ou seja, que em cada volição há e deve haver a capacidade para [fazer] o contrário.[16]

De acordo com Moreland e Craig, tal proposição estabelece o homem como “supremo criador das próprias ações”.

Dadas as opções A e B, pode-se praticamente escolher qualquer uma das duas; não existe qualquer circunstância que seja suficiente para determinar a escolha: a escolha compete ao indivíduo, e, caso ele opte por uma delas, poderia ter feito de outra forma, ou pelo menos poderia ter se abstido de não fazer nada. O indivíduo atua como um agente que é o supremo criador das próprias ações, e, nesse sentido, ele controla a ação.[17]

Esta posição é também conhecida como liberdade libertária: “quando uma pessoa escolhe, ela sempre poderia ter escolhido de outro modo. […] nenhuma escolha humana é determinada por uma causa”.[18] Uma pessoa poderia tomar uma decisão ou seguir um rumo de ação completamente autônomo e autodeterminante, sem estar debaixo de qualquer influência.

O mais sensato parece ser admitir que esta possibilidade de livre-arbítrio funciona apenas na teoria, pois, na prática, o ser humano nunca possuiu tal capacidade, mesmo antes da queda. Antes da queda, Adão podia obedecer ou desobedecer a Deus, mas, isso equivalia a submeter-se a Deus criador ou à serpente. Ele não era autodeterminante. Sempre esteve em jogo a submissão do homem a alguém. Após a queda, a escravidão espiritual do homem é abolida quando a alma é posta, por graça, sob a liderança e discipulado de Jesus Cristo. Em suma, sempre há uma influência externa envolvida. Quanto ao exercício de sua vontade, o ser humano é sempre dependente.

4. Sabedoria na evangelização

Quando conversamos com um não crente sobre livre-arbítrio, corremos risco de mergulhar em um diálogo de surdos. Utilizamos o termo livre-arbítrio, imaginando que estamos sendo compreendidos, mas a pessoa com quem interagimos pode estar entendendo livre-arbítrio como (1) sinônimo de livre agência, ou como (2) capacidade de escolher Deus e a salvação, ou ainda, como (3) habilidade para tomar decisões absolutamente autônomas.

Imagine uma conversa com alguém que abraça o pensamento popular. Quando você disser que, a partir da queda, o homem “perdeu” o livre-arbítrio, seu interlocutor argumentará que isso é absurdo, que o ser humano pode tomar decisões administrativas e morais. O não cristão pode compreender, erroneamente, que o Cristianismo, ou pelo menos a doutrina reformada, ensina o fatalismo. A Bíblia ensina o determinismo compatibilista: Deus governa sobre tudo, assegurando a realização do propósito por ele determinado, ao mesmo tempo em que responsabiliza os agentes morais, sejam anjos, sejam homens (Is 46.9-11; Rm 8.28; 9.11; Jd 5-6). [19] Isso, porém, é diferente de fatalismo, a “doutrina de que a ação humana não tem influência sobre os acontecimentos”.[20]

Pense agora, em uma discussão com alguém que acredita em livre-arbítrio como a capacidade do ser humano funcionar como “supremo criador das próprias ações”. Se for assim, no Éden, o homem controlava a ação. Se, para piorar a situação, você der a entender que, na glorificação, o que foi perdido no Éden será restaurado, isso equivalerá a afirmar que seremos eternamente autodeterminantes. Sua “versão” do evangelho soará como doutrina de autodivinização.

Sejamos cuidadosos, expressando as verdades de Deus com o máximo de exatidão, principalmente por causa do resultado eterno da evangelização. Sendo assim, antes de prosseguir no diálogo evangelístico, esclareça o que você quer dizer com livre-arbítrio. Minha recomendação é que você prefira fazer uso do vocabulário bíblico mesmo. Diga que Deus criou Adão e Eva perfeitos, para viverem com ele em aliança. Diga, ainda, que Adão podia obedecer a Deus ou não e que, após a queda, o homem foi feito escravo do pecado. Afirme que Jesus Cristo veio ao mundo para resgatar o homem deste estado (e aqui, explique a morte de Jesus na cruz e sua ressurreição). Informe que o Espírito Santo renova a vontade do homem, capacitando-o a se arrepender e crem em Jesus Cristo, submetendo-se ao seu senhorio no discipulado. Se, nesse meio tempo, seu interlocutor falar sobre livre-arbítrio, pergunte a ele o que ele entende quando usa esta palavra. Depois de compreender bem o que ele quer dizer, explique as diferenças entre livre agência e livre arbítrio. Na dependência do Espírito Santo, ajude-o a entender que somos seres abençoados com uma vontade que traduz nossa capacidade administrativa e responsabilidade moral, mas somos salvos pela vontade soberana de Deus, por meio de Cristo apenas.

Considerações finais

Há pessoas que rejeitam o Cristianismo argumentando que não são máquinas. Uma vez que têm livre-arbítrio, elas dizem “não” à fé cristã. Tal argumentação apenas reforça o que consta acima. O indivíduo possui livre agência e sua rejeição do Cristianismo apenas reforça que ele não tem livre-arbítrio. Ao dizer “não” à fé, ele faz o que lhe é natural, pois é decaído, morto e escravo do pecado. Para crer, ele precisa ser tocado pelo milagre da regeneração.

Como liberdade libertária, o livre-arbítrio é apenas uma abstração. Pode existir como conceito, mas não pode ser praticado. Uma avaliação profunda e honesta de cada pensamento, decisão e ação, revela que nunca agimos de modo absolutamente autodeterminante (livre de quaisquer influências).

Possuímos livre agência. Não possuímos liberdade de vontade absoluta. Como seguidores de Jesus, nossas vontades estão sendo transformadas gradativamente, de modo a se tornarem obedientes à vontade de Deus.

Agrada-me fazer a tua vontade, ó Deus meu; dentro do meu oração, está a tua lei (Sl 40.8).


Notas

[1] MINTZBERG, Henry; AHLSTRAND, Bruce; LAMPEL, Joseph. Safári de Estratégia: Um Roteiro Pela Selva do Planejamento Estratégico. Porto Alegre: Bookman, 2000, p. 210. Ao afirmar “não temos escolha”, Singer sinaliza que a vontade humana não é livre.

[2] Responsabilidade nem sempre é sinônimo de culpa. Ser responsável por um ato não equivale a ser culpado juridicamente por ele. Por exemplo, uma pessoa pode matar outra em um ato de legítima defesa, sem motivação prévia. Por causa desta distinção, os sistemas legais definem agravantes e atenuantes, consideradas em cada julgamento. Um tribunal pode reconhecer que alguém cometeu determinado ato e, ao mesmo tempo, aplicadas as atenuantes, o acusado pode não ser declarado “culpado”.

[3] “Frustração”. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Eletrônico 7.0. Curitiba: Editora Positivo, 2009. CD-ROM.

[4] FRY, C. Wm.; NELSON, J. H. “Hino 113 Achei Um Bom Amigo”. In: MARRA, Cláudio. (Org.). Novo Cântico. 16ª ed. reimp. 2015. Cultura Cristã: São Paulo, 2013, p. 89-90.

[5] OGDEM, Wm. A.; GINSBURG, S. L. “Hino 198 Salvação Graciosa”. In: MARRA, op. cit., p. 154.

[6] OGDEM; GINSBURG, ibid., loc. cit.

[7] BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. 4ª ed. reimp. 2015. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 100. Grifo nosso. Berkhof resume o que consta em HODGE, Charles. Teologia Sistemática. São Paulo: Hagnos, 2001, p. 691-714.

John Frame evita o uso da expressão “livre agência“, mas afirma o mesmo sobre esta configuração e capacidade humana, designando-a de “liberdade compatibilista“; cf. FRAME, John. Teologia Sistemática. São Paulo: Cultura Cristã, 2019, v. 2, p. 166-167. Ele Frame trabalha a partir do conceito filosófico de “determinismo moderado ou compatibilismo. As reações deste último tipo afirmam que tudo que podemos desejar de uma noção de liberdade é completamente compatível com o determinismo”; cf. BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 228. Como veremos, o ensino da Bíblia sobre liberdade humana combina com este determinismo moderado.

[8] Cada “escolha humana é determinada por uma causa, quer seja essa causa Deus, algo no ambiente da pessoa, a hereditariedade, a disposição moral (‘coração’) ou o desejo”; cf. FRAME, John. Teologia Sistemática. São Paulo: Cultura Cristã, 2019, v. 1, p. 356.

[9] Cf. HODGE, op. cit., p. 701-703; BERKHOF, op. cit., p. 227-236; HORTON, Michael. Doutrinas da Fé Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 593-595. Ao lidar com tópicos referentes ao livre-arbítrio, o teólogo reformado contemporâneo, John Frame (v. 2, p. 166), prefere usar a expressão “liberdade moral”. Esta é a “liberdade de fazer o bem” e prossegue: “Como vimos, as Escrituras ensinam que a queda de Adão eliminou nossa liberdade moral, de modo que, à parte da graça, não ‘podemos’ agradar a Deus” (ibid., loc. cit). Quando Frame menciona a eliminação da liberdade moral, ele não está dizendo que o homem não possui responsabilidade moral. De acordo com ele, como mencionamos, esta responsabilidade está presente na “liberdade compatibilista”, que designamos aqui como “livre agência”.

[10] AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona. O Livre-Arbítrio. São Paulo: Paulus, 1995. (Patrística, v. 8). Edição do Kindle.

[11] Cf. LUTERO, Martinho. “Da Vontade Cativa”, In: Obras Selecionadas. Debates e Controvérsias – Volume 4. São Leopoldo: Editora Sinodal; Concórdia, 1993.

[12] CALVINO, João. As Institutas: Edição Clássica. 2ª ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 2, cap. II.

[13] SÍNODO NACIONAL DA IGREJA REFORMADA. “Cânones de Dort”. In: BÍBLIA DE ESTUDO HERANÇA REFORMADA (BEHR). São Paulo; Barueri: Cultura Cristã; Sociedade Bíblica do Brasil, 2018, p. 1975-1991.

[14] “Livre-arbítrio”. In: FERREIRA, op. cit., loc. cit.

[15] Ibid., loc. cit.

[16] HODGE, op. cit., p. 694-695.

[17] MORELAND, J. P.; CRAIG, William Lane. Filosofia e Cosmovisão Cristã. São Paulo: Vida Nova, 2005, p. 300.

[18] FRAME, v. 1, p. 356. Frame diz que este conceito é também chamado de “libertarismo” ou “incompatibilismo, porque não é compatível com o determinismo” (v. 2, p. 168).

[19] Determinismo é “a doutrina segundo a qual tudo o que acontece tem uma causa” (BLACKBURN, op. cit., p. 227). Os cristãos bíblicas entendem que esta causa é a vontade soberana (às vezes, insondável) de Deus. Cf. FRAME, v. 1, p. 214: “Assim, toda a história da procriação humana está debaixo do controle de Deus, visto que ele age intencionalmente para concretizar a concepção de cada um de nós (Gn 4.1,25; 18.13-14; 25.21; 20.31—30.2,17,23-24; Dt 10.22; Rt 4.13; Sl 113.9; 127.3-5). […]. Depois do nascimento, também, os acontecimentos da nossa vida estão nas mãos de Deus”. E ainda (ibid, p. 215): “O que quer que façamos depende da vontade de Deus para que aconteça”. Por fim (ibid., p. 216): “[…] as Escrituras ensinam diretamente que Deus está por trás das nossas decisões livres”.

[20] BLACKBURN, op. cit., p. 144.


Referências bibliográficas

AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona. O Livre-Arbítrio. São Paulo: Paulus, 1995. (Patrística, v. 8). Edição do Kindle.

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BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.

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MORELAND, J. P.; CRAIG, William Lane. Filosofia e Cosmovisão Cristã. São Paulo: Vida Nova, 2005.

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