Sobre políticas eclesiásticas

— por

O Conclave

Assistindo ao filme O Conclave, dirigido por Christoph Schrewe e escrito por Paul Donovan, senti-me desejoso de escrever algo sobre as chamadas políticas eclesiásticas.

Um conclave é uma reunião de cardeais, convocada com a finalidade de nomear um novo Papa para a Igreja Católica Romana. A obra retrata o primeiro conclave de Rodrigo Borgia, o licencioso cardeal e vice-chanceler da Igreja que algumas décadas depois se tornaria o Papa Alexandre VI. A produção é digna de nota, notadamente a exposição dos bastidores da política eclesiástica dos tempos medievais.

Os cristãos sinceros acompanharão as cenas com um misto de desapontamento e asco. Nesses termos, parece-me que o filme tem algo a dizer não apenas sobre a Igreja Romanista, mas sobre o Cristianismo em geral, em todos os seus segmentos denominacionais. A Igreja como um todo é convocada a repensar em que medida suas políticas expressam o exemplo e ensino de Jesus Cristo. Os que exercem cargos são desafiados a verificar suas motivações e atuações no cenário da administração dos assuntos eclesiásticos.

Surgem duas questões:

  1. A política é necessária na administração das coisas da Igreja?
  2. Se a resposta à questão anterior for positiva, como tal política deve ser implementada?

Não há governo sem política

É fácil identificar toda política com lixo, quando, na verdade, política tem a ver com a polis, aquilo que é coletivo, e com a organização dessa coletividade. Política é a “arte ou ciência de governar” ou a “arte ou ciência da organização, direção e administração” (MICHAELIS, 1998, p. 1658). Nesse sentido, não há governo sem política.

O ponto, então, não é se deve haver política na gerência da Igreja, mas em que medida tal política reflete o propósito de Deus revelado em sua Palavra. Uma política bíblica, orientada para o fortalecimento, proteção e desenvolvimento saudável da Igreja é boa política. Políticas doutrinariamente mal orientadas ou encaminhadas para a satisfação de egos é sempre inadequada e má.

A providência divina faz uso da política eclesiástica

Em 2 Samuel 7 encontramos o texto clássico da aliança davídica. Deus promete a Davi o estabelecimento eterno de seu trono:

Quando teus dias se cumprirem e descansares com teus pais, farei levantar depois de ti o teu descendente, que procederá de ti, e estabelecerei o seu reino. Este edificará uma casa ao meu nome, e eu estabelecerei para sempre o trono do seu reino (vv. 12-13).

Tal promessa tem relação direta, primeiramente, com Salomão e alcança, em termos mais amplos a Jesus, o Messias de Israel (Cf. Mt 1.6-16). Em suma, Deus prometeu a Davi que confirmaria seu trono através de Salomão, que, por sua vez, seria o ascendente direto de Jesus Cristo, o Redentor. A promessa extrapola o âmbito das bênçãos a Davi, para confirmar o cumprimento do pacto da Redenção, anunciado desde Gênesis 3.15. Trata-se do desdobramento do decreto do Todo-Poderoso, de seu bendito propósito — algo que ele certamente iria cumprir, para sua glória (Cf. Is 46.8-13).

A leitura da Escritura demonstra, para surpresa de muitos, que tal propósito foi cumprido com o exercício da boa política.

É possível afirmar que o cumprimento da promessa de 2 Samuel 7, e, sem exagero de todas as promessas messiânicas, depende das ações de Natã e Bate-Seba, registradas em 1 Reis 1. Este capítulo relata, resumidamente, o seguinte:

  • Davi é considerado velho e decrépito. Portanto, é urgente que o seu sucessor seja oficialmente definido, anunciado e coroado.
  • Adonias, filho de Davi, aproveita-se da aparente fragilidade da situação para usurpar o trono. Adonias usa de má política para satisfazer aos seus desejos egoístas, desprezando a promessa de Deus (a palavra objetiva divina, que revelava Salomão como sucessor Cf. 1Rs 1.17, 28-31).
  • Natã mobiliza Bate-Seba, mãe de Salomão. O profeta propõe uma apresentação convincente para que o rei Davi relembre os termos da aliança estabelecida em 2 Samuel 7. Juntamente com Zadoque, o sacerdote, e Benaia, filho de Joiada, articula-se uma boa política, a fim de impedir a tomada de poder de Adonias.
  • A estratégia de Natã é implementada com sucesso. Salomão é coroado e Adonias pede indulto. Não apenas a sucessão salomônica é confirmada, mas a ascendência do Messias é assegurada, a fim de cumprir-se, em plenitude, o propósito divino com relação ao Pacto da Redenção.

Observe-se que a ação estratégica inteligente foi usada por Deus para impedir o domínio dos maus e assegurar o cumprimento da vontade do Senhor. A providência divina fez uso da boa política eclesiástica.

Realidades das políticas eclesiásticas

Papa Alexandre VI
Papa Alexandre VI

No filme O Conclave a política eclesiástica é usada em seu pior sentido, com a finalidade de atender aos desejos egoístas dos cardeais da Igreja Romana. Trata-se, portanto, de um exemplo de má política.

Alguns sinais revelam problemas na política de uma instituição cristã. Algo vai mal quando:

  • para “sobreviver” na organização, é preciso desconfiar de tudo e de todos;
  • para aprovar algum projeto benéfico para a comunidade cristã, torna-se necessário algo mais do que motivação correta, boas idéias, iniciativa santa e capacidade de comunicação;
  • para obter um cargo na organização, além da integridade, ortodoxia e competência, são exigidas relações de absoluta dependência com pessoas-chave (a famosa e nefasta prática do QI — “quem indique”);
  • na discussão de pontos de vista discordantes, desaparece a espontaneidade, honestidade (capacidade de falar com franqueza, olhando nos olhos) e bondade.

As boas políticas eclesiásticas devem ser exercidas com amor. “Com suspeitas não se alcança vero amor, onde houver desconfiança, ai do amor” (Hino 178 do hinário Novo Cântico).

O amor cristão, no entanto, não deve ser confundido com ingenuidade. A Escritura e a história confirmam que em toda instituição há pecado; a ortodoxia é sempre ameaçada pela heresia e o mal exige a resistência do Bem. Até o retorno de nosso Senhor, a má política sempre será confrontada pela boa política. Aos seus discípulos, enviados para testemunhar no contexto da liderança religiosa judaica, Cristo recomendou o seguinte:

Eis que eu vos envio como ovelhas para o meio de lobos; sede, portanto, prudentes como as serpentes e símplices como as pombas (Mt 10.16).

Ou seja, vocês são ovelhas no meio de lobos. Não se iludam, vocês me servirão em meio aos devoradores. Não sejam ingênuos, não sejam tolos. Eis o fato chocante: o néscio, mesmo que “piedoso” e “bem intencionado”, não permanece de pé nas estruturas eclesiásticas.

Como implementar a boa política eclesiástica

Defino boa política eclesiástica nesses termos: A boa política eclesiástica é o conjunto de ações bíblicas relacionadas ao governo, organização, direção e administração da Igreja. Aqui ainda cabem algumas qualificações.

Uso o termo “bíblicas” como sinônimo de reformadas e confessionais (alinhadas aos Símbolos de Fé de Westminster). Tais ações bíblicas têm por objetivo:

  • a glória de Deus;
  • a edificação, o fortalecimento, a proteção e o desenvolvimento saudável da Igreja.

Eis o desafio: agir para o bem da Igreja sem ingenuidade e, ao mesmo tempo, permanecer doce, crente e discípulo fiel do Senhor. Não se deixar levar pela contaminação que brota das inclinações pecaminosas. Tratar dos “negócios” da Igreja sem manchar as mãos, os olhos, a consciência e a alma.

Mais: O texto de 1 Reis 1 está na Escritura, aberto a quem quiser ler, até mesmo aos novos convertidos. Me pergunto se o modo como encaminhamos as coisas, no âmbito da alta administração da Igreja, pode ser conhecido pelos novos convertidos. É minha convicção que se um novato na fé se escandaliza com algo que eu digo ou faço — ou dizemos e fazemos como Concílios — na esfera da liderança da igreja, isso não é certo, não convém, não reproduz o caráter do Redentor.

Santidade prática não é exigida apenas da vida pessoal dos membros da Igreja. Santidade é virtude vital para a administração. A Igreja deve ser pura não apenas na devoção de seus membros, mas no seu modus operandi institucional.

Em meu tacanho entendimento, não há como permanecermos íntegros se não cultivarmos a utopia da graça. Ou nos compreendemos, como indivíduos e igrejas, acolhidos pela misericórdia, ou ruímos. Isso exige de nós uma opção: a política eclesiástica em termos mesquinhos ou a boa política marcada pela honestidade alimentada pela experiência da graça. Eu fico com a segunda opção. Para quem deseja seguir o exemplo de Rodrigo Bórgia, meus sinceros pêsames.

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