Dentre os conceitos contemporâneos de liderança destaca-se o fornecido por Blanchard et al: Liderança “é a capacidade de influenciar outros a liberar seu poder e potencial de forma a impactar o bem maior”.[01] Esta consideração diferencia-se das demais por sua ênfase na liberação do “poder e potencial” dos liderados e pela incorporação da ideia de “bem maior” que abrange não apenas os resultados da organização, mas “aquilo que é o melhor para todos os envolvidos”.[02] Distancia-se da noção ultrapassada de uso das pessoas para alcançar objetivos meramente institucionais e financeiros e abre um espaço para a realização do pleno potencial humano. O ponto a questionar é se tal conceito é, de fato, bíblico e, por conseguinte, cristão.
Primeiro, o que vem a ser o “bem maior”? Os cristãos podem responder afirmando que o “bem maior” é o próprio Deus. Essa identificação do “bem maior” com Deus seria bonita mas inadequada à presente frase, pois significaria que liderança seria “influenciar outros a liberar seu poder e potencial de forma a impactar” Deus. Isso não coaduna com a perspectiva ortodoxa. O melhor é compreender o “bem maior” como o propósito de Deus. Deus tem uma deliberação bíblica para a sua igreja, de modo que liderança seria “a capacidade de influenciar outros a liberar seu poder e potencial de forma a impactar” ou alcançar ou realizar este propósito.
Surge, porém, um segundo problema, agora relacionado aos termos “poder” e “potencial”. Do ponto de vista da Escritura, por causa da queda, o “poder” e “potencial” do homem são destrutivos. Temos uma capacidade inata de deformar, deteriorar, piorar as coisas. Deixados às nossas próprias inclinações produzimos dano (cf. as “obras da carne” em Gl 5.19-21). Sendo assim o mais recomendado é pensar em “poder” e “potencial” como aquilo que podemos realizar pela graça de Deus — o que Deus permite e até exige que os cristãos regenerados façam antes da glorificação. Três coisas podem — e devem — ser realizadas: (1) crescer em santidade, que equivale a amadurecer em Cristo (cf. Ef 4.13-16 e 2Pe 3.18); (2) cumprir as ordenanças divinas (os mandados espiritual, social e cultural, estabelecidos na criação — Gn 1.26-28, 2.15-17, 21-25) e (3) servir com nossos dons (Rm 12.1-8). Eis como ficaria nossa definição: Liderança é a capacidade de influenciar os cristãos a amadurecer espiritualmente, a cumprir os mandados da criação e a servir ao Senhor com os seus dons, de forma a auxiliar no cumprimento da vontade de Deus para e através da igreja. Estamos próximos de uma conceituação mais bíblica, mas nosso exercício ainda não terminou.
A última dificuldade é enxergar a liderança cristã como “capacidade de influenciar”. Biblicamente “Deus é quem opera em nós tanto o querer quanto o realizar” (Fp 2.13). Nós sabemos que do ponto de vista secular muitos homens e mulheres se destacam por sua capacidade de influenciar, uma capacidade que podemos chamar de natural ainda que saibamos que tudo o que é natural funciona sob a égide da providência divina. O ponto a destacar é esse: nós compreendemos que quem produz amadurecimento (santificação), motivação para a obediência, os dons e as condições contextuais e circunstanciais para uso desses dons é Deus. Quem motiva, quem revitaliza, quem concede um impulso duradouro que prossegue até a glorificação é o Espírito Santo. Quem concede influência ao líder é o Senhor: “Bendito seja YHWH […] quem me submete o meu povo” (Sl 144.1,2 — grifo nosso). Não há presbítero docente ou regente que consiga isso, pelo menos não produzindo fruto espiritual duradouro (cf. Jo 15.16). A obra é dele, as iniciativas são dele e é ele quem produz na igreja tanto o despertamento quanto o entorpecimento (Is 51.17, 22).
Então, o quem ver a ser liderança nesses termos? Observemos os modelos da Escritura: nós temos um líder que não tem nada de carismático, Moisés (Êx 3.11); um menino, Jeremias, que sabia não passar de “uma criança” (Jr 1.6); um Isaías que sabia ser um homem impuro, desqualificado para sequer permanecer diante do Senhor dos (Is 6.5). Esses são modelos bíblicos — e outros poderiam ser citados. Deus escolhe pessoas que se sentem inadequadas, ele chama aos humildes e aparentemente incapazes. Sendo assim, o modelo bíblico de liderança parece divergir do modelo secular nesse ponto. A diferença não está, como temos ouvido nas últimas décadas, na ideia cristã de serviço (cf. Mc 10.43-45). Atualmente, o modelo do líder que serve é apresentado em qualquer seminário empresarial. O ponto em que a liderança cristã diverge radicalmente da secular é na insistência da primeira em afirmar que é impossível produzir resultados à parte da intervenção divina; é impossível liderar biblicamente com base na carne; a igreja é conduzida pelo Espírito. Se eu influenciar um membro da igreja a ser santo, pobre homem! Buscará a santidade a partir da influência de Misael, outro miserável pecador; se o Conselho influenciar a igreja a abraçar uma visão ou declaração de missão, isso não será diferente de um Estado motivar seus cidadãos a abraçar determinada ideologia. Almejamos ser instrumentos em uma obra divina, oramos por um avivamento autêntico e desejamos que graça celestial transborde a partir de nossa liderança. Quando isso não ocorre é o fim — ou talvez, a evidência de que até o começo foi comprometido.
Se isso é assim, como fica o nosso conceito de liderança? Eis uma tentativa: Liderança cristã é a capacidade de caminhar com as pessoas fazendo o que Deus quer e, pelo poder do Espírito, segundo o mistério da providência divina, auxiliar os discípulos de Jesus Cristo a amadurecer espiritualmente, a cumprir os mandados da criação e a servir ao Senhor com os seus dons, de forma a auxiliar no cumprimento da vontade de Deus para e através da igreja. Aqui verifica-se uma melhoria no início e uma piora no fim da conceituação. A sentença a partir da palavra “dons” ficou redundante, uma vez que o cumprimento da vontade do Altíssimo está contido na expressão “segundo o mistério da providência divina”. Sendo assim, eis a redação final:
Liderança cristã é a capacidade de caminhar com as pessoas fazendo o que Deus quer e, pelo poder do Espírito, segundo o mistério da providência divina, auxiliar os discípulos de Jesus Cristo a amadurecer espiritualmente, a cumprir os mandados da criação e a servir ao Senhor com os seus dons.
Seria este um conceito definitivo? Trata-se, certamente, de uma aproximação. Sugestões de aprimoramento, provindas dos leitores, serão muito bem-vindas.
Notas
01. BLANCHARD, Ken et al. Liderança de Alto Nível: Como Criar e Liderar Organizações de Alto Desempenho. Reimpressão. Porto Alegre: Bookman, 2007, p. 15.
02. Ibid., loc. cit. Grifo nosso.
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