Igreja missional ou igreja pactual?

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— A igreja existe para os outros — fez questão de repetir o preletor, baseando seu argumento na bênção abraâmica de Gênesis 12.1-3 e entremeando seus arrazoados com a citação de um teólogo alemão. Ouvi aquelas palavras com profundo respeito e admiração, louvando a Deus por estar diante de um de seus servos frutíferos e orando para que eu mesmo fosse impactado pelo poder edificante da Escritura.

Saí do auditório, fechei minha conta no hotel e desci a serra a fim de pegar a rodovia que me conduziria a minha cidade. Na mente a frase “a igreja existe para os outros”, indo e voltando, enlaçada pelos ditos e apresentação pertinentes.

Se isso é assim, tudo deve adaptar-se para o alcance dos “de fora”; os crentes assumem o desafio da contextualização e a igreja tradicional dá lugar à igreja missional: culto, estratégias, estrutura e programas convergem para o supremo objetivo de ganhar vidas para o Senhor Jesus Cristo; igrejas históricas conformam-se com sua dificuldade de fazer a curva de mudança e sua morte iminente (porque, sem mudança na forma, não há como alcançar os “de fora”) e investem na plantação de novas igrejas desenhadas desde o início de acordo com o perfil de seu “público-alvo”: uma igreja decorada com paredes pretas e em cujo centro do local de reuniões se posiciona uma banda de rock, para alcançar os “metaleiros”, ou uma igreja perfilada ao estilo country para atrair os que gostam de música sertaneja. De longe a igreja histórica motiva e sustenta, mas nada de tentar reproduzir seu modo de fazer as coisas na nova comunidade. Aliás, o título “igreja” envelheceu; “comunidade” parece ser o mais adequado e “culto” passa a ser “celebração”, pois a contextualização exige uma nova linguagem.

Eu já abracei muitas destas ideias. Hoje penso diferente.

Envelheci? Certamente, mas a idade não foi determinante. Mudei quando refleti sobre a igreja a partir da ótica do pacto.

O que chamo de igreja missional não é um movimento e sim uma proposta de visão e funcionamento da igreja que enfatiza prioritariamente o alcance dos de fora, uma igreja inclusiva, nos moldes da igreja em Atos. Há muita coisa boa nesta sugestão, como escreverei adiante. Por ora destaco apenas a possibilidade de reducionismo da missão.

A possibilidade de reducionismo da missão

A proposta de uma igreja centrada nos de fora é interessante porque toca no problema do grupo de crentes que se isola da cultura e demonstra completa indiferença à comunidade circundante. Toda instituição corre o risco de engessar-se. Quando isso acontece, não se consegue mais enxergar as reais necessidades existentes. É assim nas corporações de modo geral e é assim na igreja. Uma igreja pode lutar pela ortodoxia e liturgia, manter uma agenda de atividades exaustiva e, ainda assim, falhar na prática do amor — o que inclui a evangelização — ao ponto de ser riscada do mapa (Ap 2.1-7;1 cf. 1Co 13.1-3). Ano após ano, uma igreja pode orientar-se por uma cultura de manutenção e saudosismo, destacando os feitos do passado ao mesmo tempo em que pouco ou nada faz para cumprir a missão no presente ou, como nos diz Driscoll:

As igrejas em nossos bairros continuam mais parecidas com museus, tentando manter a memória de um passado em que Deus se manifestou gloriosamente, transformando as pessoas, do que com pontos centrais de um movimento para reformar a cultura dos dias atuais.2

Cada Evangelho contém um mandado missionário e a caminhada da igreja em Atos é marcada pela contínua expansão geográfica da Palavra de Deus (Mt 28.18-20; Mc 16.15; Lc 24.44-50; Jo 20.21; e.g. At 1.8, 2.41 e 47, 4.4, 5.14, 6.1,7 e 9.31). Paulo, o plantador de igrejas, ajustou toda sua vida ao propósito de “ganhar” pessoas para Cristo:

[16] Se anuncio o evangelho, não tenho de que me gloriar, pois sobre mim pesa essa obrigação; porque ai de mim se não pregar o evangelho! [17] Se o faço de livre vontade, tenho galardão; mas, se constrangido, é, então, a responsabilidade de despenseiro que me está confiada.

[18] Nesse caso, qual é o meu galardão? É que, evangelizando, proponha, de graça, o evangelho, para não me valer do direito que ele me dá. [19] Porque, sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos, a fim de ganhar o maior número possível. [20] Procedi, para com os judeus, como judeu, a fim de ganhar os judeus; para os que vivem sob o regime da lei, como se eu mesmo assim vivesse, para ganhar os que vivem debaixo da lei, embora não esteja eu debaixo da lei. [21] Aos sem lei, como se eu mesmo o fosse, não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo, para ganhar os que vivem fora do regime da lei.

[22] Fiz-me fraco para com os fracos, com o fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por todos os modos, salvar alguns. [23] Tudo faço por causa do evangelho, com o fim de me tornar cooperador com ele (1Co 9.16-22).

Outros apóstolos confirmam o padrão paulino: Para Pedro, o propósito da igreja é proclamar “as virtudes” divinas (1Pe 2.9) e João, no Apocalipse, depois de “comer” o “livrinho aberto” do evangelho, recebe a incumbência de anunciá-lo aos “povos, nações, línguas e reis” (Ap 10.1-11). Tudo isso confirma que, de fato, a igreja incorre em grave erro quando passa a viver em função de si mesma (tabela 01).

O primeiro erro da igreja: viver em torno de si mesma

Tabela 01: O primeiro erro da igreja: Viver em função de si mesma

Não há diferenças, até aqui, entre as igrejas missionais e pactuais. Ambas as perspectivas concordam com a necessidade de cumprimento da missão. Parece-me que o ponto de divergência encontra-se no entendimento da missão (tabela 02).

Diferentes entendimentos da tarefa da igreja

Tabela 02: As diferenças de entendimento da missão, nas igrejas missionais e pactuais

A declaração missional de que a igreja deve existir “para os outros” sustenta-se sobre o pressuposto de que o esforço maior da igreja deve concentrar-se na evangelização. Tal proposta não é contrária à ideia de pacto, uma vez que enfatiza consideravelmente o pacto da redenção. A questão é que os missionais compreendem a adoração (teologia do culto), o pastoreio (a teologia prática) e a igreja (eclesiologia), como círculos concêntricos estabelecidos a partir da evangelização (figura 01).

O centro da evangelização nas igrejas missionais

Figura 01: O centro da evangelização nas igrejas missionais

Eis a razão pela qual, na proposta missional, tudo se ajusta ao fim evangelístico. Ganhar pessoas é o objetivo primordial, o pastoreio é ferramenta da missão e o culto se torna um encontro facilitador, um evento cuidadosamente projetado e executado para atrair e produzir impacto no visitante não-crente. Cada detalhe da estrutura da igreja é desenhado e redesenhado quase que ininterruptamente, a fim de otimizar o crescimento numérico da congregação.

Igrejas pactuais, por sua vez, compreendem que o pacto da redenção, que culmina com a comissão evangelística, encaixa-se dentro do pacto da criação no qual são estabelecidos os mandados espiritual, social e cultural (figura 02).

Os pactos da criação e redenção

Figura 02: Os pactos da criação e da redenção

A obra de Cristo garante a plena realização da vontade de Deus quanto à totalidade do universo. O homem foi criado à imagem e conforme a semelhança de Deus, com a finalidade de atuar com seu vice-gerente, tendo com ele comunhão de amor e obediência (o mandado espiritual), estabelecendo sociedade (o mandado social) e dominando a terra de modo agradável ao Criador (o mandado cultural — Gn 1.26-31, 2.15-16).

Por causa da desobediência de Adão e Eva, o homem tornou-se pecador e, consequentemente, separado de Deus (Gn 3.1-11; Is 59.2). Tal quadro desolador parece significar, em um primeiro momento, que o propósito divino revelado na criação foi frustrado. Observe-se, no entanto, que imediatamente após a entrada do pecado na história humana, Deus anunciou o pacto da redenção: O estrago feito pela serpente seria reparado por meio de Jesus Cristo (Gn 3.15; Cl 2.14-15). Geração após geração, o Senhor ratificou a aliança. Ele fez isso com Noé (Gn 9.1-17), Abraão (Gn 12.1-3, 15.1-21, 17.1-14), Moisés (Êx 19.3-6; Dt 18.15) e Davi (2Sm 7.12-16; Jr 33.17-22). Cada um desses pactos apontava para Jesus, o Messias que selou a “nova” e definitiva aliança (Jr 31.31-34; Mt 26.26-28).

A obra vitoriosa de Cristo estabelece não apenas a redenção dos eleitos, mas também, a reconciliação de “todas as coisas, quer sobre a terra, quer nos céus” (Cl 1.20; cf. Rm 8.19-22). Cada aspecto da realidade, a partir de Cristo, pode e deve ser considerado pelos ângulos da criação, queda e redenção. No Apocalipse João enxerga o universo, simbolizado pelos “quatro seres viventes”, proclamando a santidade de Deus (Ap 4.6-8). É interessante que este louvor do universo precede o dos redimidos (simbolizados pelos vinte e quatro anciãos — Ap 4.9-11). Em outras palavras, quem Cristo é e o que ele realizou e realiza produz impacto em todo o cosmos. Cabe à igreja, certamente evangelizar, mas, também, desafiar e capacitar os cristãos a marcarem todas as áreas da vida com o caráter de Jesus (Cl 3.17). Como nos diz Eugene Peterson, “há uma verdadeira batalha espiritual em curso. Há uma intensa batalha moral. […] Não existe zona neutra no Universo. Cada centímetro quadrado é área de contestação”.3

Resumindo, a Bíblia faz referência ao cumprimento tanto das ordens ligadas à evangelização quanto dos mandados criacionais. Evangelizar é um dos aspectos da “edificação” e serviço da igreja. Sendo assim, a igreja pactual tem como centro os mandados criacionais, cujo cumprimento se torna possível graças à redenção (a faixa vermelha da figura 03).

Os mandados criacionais no centro, tornados possíveis pela obra de Cristo

Figura 03: Os mandados criacionais no centro, tornados possíveis pela obra de Cristo

A redenção produz a igreja, uma comunidade aberta não apenas a uma sociedade em particular, mas à criação (observe que a linha que separa a igreja do restante da criação é pontilhada). Igrejas centradas unicamente na evangelização correm o risco de serem deficientes na capacitação dos santos para a totalidade do ministério.

Notas

1. Escrevi um breve comentário sobre a carta de Cristo à Igreja em Éfeso. Você pode conferi-lo em http://www.misaelbn.com/2008/03/a-igreja-de-efeso-ortodoxia-carente-de-amor/. Quanto a 1Coríntios 13, considero assustadora a ideia de alguém poder empreender atos aparentemente altruístas — distribuir os “bens entre os pobres” — ou sacrificiais — entregar o “próprio corpo para ser queimado”, v. 3 — sem um pingo de amor genuíno!

2. DRISCOLL, Mark. Reformissão: Como Levar a Mensagem Sem Comprometer o Conteúdo. Niterói: Tempo de Colheita, 2009, p. 19.

3. PETERSON, Eugene. Corra Com os Cavalos: Para Quem Busca Uma Vida da Excelência. São Paulo: Ultimato e Textus, 2003, p. 46-47.

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Respostas

  1. Misael Nascimento: Somente Pela Graça » Blog Archive » Dois incômodos da igreja missional

    […] Por gentileza, leia o texto devidamente revisado em http://www.misaelbn.com/2010/07/igreja-missional-ou-igreja-pactual/. […]

  2. Misael Nascimento: Somente Pela Graça » Blog Archive » A igreja existe somente “para os outros”?

    […] Por gentileza, leia o texto devidamente revisado em http://www.misaelbn.com/2010/07/igreja-missional-ou-igreja-pactual/. […]

  3. Avatar de Rev. Anatote Lopes
    Rev. Anatote Lopes

    Minha conclusão simples, é que a “igreja pactual”, compreende a missão da “igreja missional” sem perder o foco que é realizar a vontade de Deus, um compromisso com a natureza e o propósito para a qual foi criada, isto é em amor e obediencia ao Criador.

    Se errei o alvo me corrija…

    Um abraço,

  4. Avatar de Misael
    Misael

    É isso Anatote. Você percebeu que há coisas preciosas na proposta missional; coisas que a igreja pactual deve averiguar e utilizar, nos moldes da CFW 1.6.

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