Você é meu convidado a refletir sobre o culto a Deus, oferecido pelos crentes sob o cativeiro babilônico. O uso da palavra “culto” revela minha crença, de que desde a criação, inclusive durante o exílio, Deus proveu meios para seu povo cultuá-lo publicamente.
No texto A importância e o arranjo pactual da adoração, eu argumento que a Escritura revela sete momentos da adoração, da criação até a consumação, se desenrolando no contexto dos pactos da criação e redenção: (1) O culto antes da queda; (2) o culto de Caim e Abel até os patriarcas; (3) o culto no tabernáculo (a partir de Moisés); (4) o culto no Templo de Jerusalém (a partir de Davi e Salomão); (5) o culto na sinagoga (a partir do período da dispersão judaica); (6) o culto cristão (a partir do Senhor Jesus Cristo e da igreja primitiva) e, por fim, (7) o culto da nova criação glorificada (figura 1).
Figura 1. Os sete momentos da adoração.[1]
A partir de Moisés, Deus concedeu instruções muito específicas para o culto público. Esta revelação sobre a adoração agradável a Deus prossegue até o livro de Apocalipse, e estabelece a base para um princípio regulador do culto.
Chama atenção a adaptação do culto às diferentes situações históricas, ou seja, Deus conduziu providencialmente para que cada geração o cultuasse atentando para o princípio regulador e, ao mesmo tempo, ajustando o modus operandi litúrgico, conforme as contingências — peculiaridades culturais, possibilidades e limitações — de cada período histórico. Nas igrejas reformadas, é comum verificar que duas igrejas, fiéis ao mesmo princípio regulador, possuem singularidades litúrgicas, decorrentes de adaptação ao tempo, lugar e povo que cultua. Ambas são reguladas pela Escritura, ao mesmo tempo em que reconhecem que:
[…] Há algumas circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo da igreja, comuns às ações e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as regras da Palavra, que sempre devem ser observadas.[16] Referência bíblica: [16]1Co 11.13,14.[2]
A Confissão de fé reconhece, com base na própria Escritura (no caso, 1Co 11.13,14), que determinadas circunstâncias exigem discernimento regulado pela Escritura e, ao mesmo tempo, ordenado “pela luz da natureza e pela prudência cristã”. Na passagem referida, Paulo questiona: “Julgai entre vós mesmos: é próprio que a mulher ore a Deus sem trazer o véu? Ou não vos ensina a própria natureza ser desonroso para o homem usar cabelo comprido?” O apóstolo não evoca nenhum texto da Escritura para nortear a regulamentação sobre o uso do véu, mas apela ao ensino da “própria natureza” e “senso de decoro dos próprios coríntios”.[3] Kistemaker esclarece que, “com a palavra natureza, Paulo está pensando na ordem natural que Deus criou”.[4] Ele diz ainda que:
No contexto cultural em que Paulo se movia, o cabelo comprido era uma vergonha para um homem, mas era glória para uma mulher. Os homens judeus cortavam o cabelo. Ocasionalmente permitiam que seu cabelo crescesse por um período estipulado porque haviam feito um voto (ver At 18.18; 21.24), mas depois eles o cortavam.
Pelas moedas, estátuas e pinturas que mostram homens do mundo greco-romano do século 1°, sabemos que os homens aparavam seu cabelo.[5]
Trocando em miúdos, Paulo estabelece uma regra para o culto dos coríntios recorrendo tanto à ordem da criação, quanto à cultura. A Igreja em Corinto deveria ajustar-se, para cultuar alinhada às Escrituras e, ao mesmo tempo, aos padrões de decoro vigentes na cultura do século 1. O culto foi adaptado à situação histórica, sem se afastar da fidelidade ao Senhor, nos termos de sua Palavra.
Eu acredito que o mesmo aconteceu durante o tempo em que o povo de Deus permaneceu exilado sob Babilônia.
I. A cessação inicial do culto público, durante o exílio
A potestade babilônica extinguiu a monarquia de Judá. A cidade e o Templo de Jerusalém, símbolos nacionais, foram demolidos. Os crentes foram arrancados de sua terra e arrastados para a Babilônia ou espalhados entre outras nações. A vida religiosa judaica sofreu abalo e trauma sem precedentes. De acordo com John Bright:
O dogma sobre o qual se baseava o Estado e o culto tinham recebido golpe mortal. Esse golpe […], foi representado pela certeza da escolha eterna de Sião por parte de Iahweh para sua morada terrena e suas promessas incondicionais a Davi de uma dinastia que nunca teria fim. Protegida por esse dogma, a nação ficou segura e, rejeitando as admoestações proféticas em contrário como tremendas heresias, esperava confiantemente a poderosa intervenção de Iahweh e um futuro que trouxesse o rebento ideal da linhagem de Davi — talvez o próximo — sob o qual o domínio justo e benéfico de Iahweh haveria de estabelecer-se, realizando todas as promessas dinásticas. […] Os aríetes de Nabucodonosor, naturalmente derrubaram irreparavelmente essa teologia. Era uma falsa teologia, e os profetas que a tinham proclamado mentiram (Lm 2.14). Nunca mais ela voltaria completamente na forma antiga.[6]
Sem dúvida, o culto no Templo, baseado em sacrifícios e no calendário litúrgico do Antigo Testamento (AT), cessou com a queda de Jerusalém sob Babilônia.[7] Nesses termos, sim, houve a cessação do culto público e iniciou-se um período de lamentações. Muitos prantearam efusivamente, entristecidos pelas lembranças dos bons tempos de outrora, pela devastação presente e pela constatação de estar debaixo da mão disciplinadora de Deus (Sl 137.1; Lm 1.1-5).
Bright informa e sugere que:
[…] o próprio status do Deus de Israel foi colocado em dúvida. Mesmo as melhores pessoas, aquelas que tinham recebido a palavra profética, estavam mergulhadas no desespero […].
Havia ameaça geral de perda da fé. Essa ameaça agravou-se quando os judeus, arrebatados de sua terra natal, entraram em contato direto com os grandes centros de cultura da época, a maioria deles pela primeira vez. Jerusalém, que, nas suas mentes estreitas, era o próprio centro do universo de Iahweh, deve ter parecido por comparação realmente pobre e retrógrada. Tendo diante dos olhos riquezas nunca sonhadas e poderes quase ilimitados, com templos magníficos de deuses pagãos em toda parte, deve ter ocorrido a muitos deles a dúvida de que Iahweh, o Deus soberano de um pequeno Estado que ele parecia incapaz de proteger, fosse realmente, afinal de contas, o único e supremo Deus. […] A religião de Israel estava sendo provada numa situação de vida ou morte. Naturalmente, ela não podia continuar como um culto nacional, apegada ao status quo ante como se nada tivesse acontecido. Ela devia esclarecer sua posição diante das grandes nações e de seus deuses, diante da tragédia nacional e de sua significação — ou então perecer.[8]
Naquele período, algumas profecias de Isaías, Jeremias e Ezequiel fomentaram uma teologia que explicou o exílio como interrupção temporária na adoração no Templo, que cederia espaço para a adoração em um Novo Templo e em Sião restaurados, depois do exílio.
O que estabilizou Israel como povo distinto e prevalecente sob o cativeiro foi sua religião. John Bright acerta ao ponderar que:
Quando se considera a magnitude da calamidade que caiu sobre Israel, não é de se admirar que ele não tenha sido tragado pelo vórtice da história juntamente com as outras pequenas nações do oeste da Ásia, que não perdesse para sempre sua identidade como povo. E se se perguntar por que tal não aconteceu, a resposta está certamente em sua religião: a religião, que lhe deu existência, mostrou-se sobretudo capaz de tal prodígio. Contudo, essa resposta não deve ser dada impensadamente, porque o exílio provou ao máximo a religião de Israel. O que Israel conquistou não aconteceu automaticamente, mas somente depois de muita meditação e de profundo reajuste.[9]
Nos termos da divina providência, a experiência do exílio fomentou arrependimento, reflexão e tomada de nova posição, diante de Deus. A culminação disso foi o reinício do culto condizente com as Escrituras e, concomitantemente, ordenado “pela luz da natureza e pela prudência cristã”.
II. O reinício do culto público, durante o exílio
Durante o cativeiro, na medida de suas possibilidades, os crentes se reagruparam e reorganizaram. Aquela condição imbricou na consolidação da sinagoga.[10] De acordo com W. White Jr., entre o tempo do AT, e a LXX (tradução grega do AT) e o Novo Testamento (NTT), “a sinagoga, e não o Templo”, foi estabelecida como “a instituição central da adoração judaica para a grande maioria dos judeus”.[11]
J. C. J. Waite assevera que “quando o santuário foi destruído e os exilados se encontravam na Babilônia, a adoração continuou sendo uma necessidade, e para satisfazer a essa necessidade é que foi ‘criado’ o culto da sinagoga”.[12] O verbo “criar”, usado por Waite, informa que a adoração do povo de Deus, nas sinagogas, por um lado contida, pois Israel não podia realizar os sacrifícios no Templo, e por outro, espalhada, pois agora Israel cultuava em muitas congregações, em diferentes nações, adquiriu feição distinta, adaptada ao contexto. Onde houvesse dez judeus, era possível estabelecer uma sinagoga,[13] não apenas para organização social, mas sobretudo para oração, ensino das Escrituras e culto ao Senhor.
A adoração na sinagoga era bem diferente da realizada no templo, não havia rituais sacerdotais e não sustentava nenhum sacerdote sacrossanto. Em vez disso, surgiu uma nova ordem de líderes religiosos para servir à sinagoga, o rabino. […].
Nos novos rituais religiosos, a celebração em cântico das orações e a leitura dos textos bíblicos se tornaram a função central do serviço religioso.[14]
Resumindo, a cessação do culto público no Templo, em Jerusalém, não constituiu impedimento absoluto ao culto público, durante o período do exílio. O cativeiro babilônio conduziu o povo a repensar sua situação à luz das Escrituras, e a reconfigurar e reativar o culto público em um novo ambiente e formato, na sinagoga.
Por fim, a sinagoga “era o centro habitual da comunidade judaica e a casa de adoração por todo o mundo conhecido na época da Jesus”.[15] Ela sobreviveu à destruição romana do Segundo Templo.[16] Mais do que isso, de acordo com Hermisten Costa, “o culto cristão encontrou o seu protótipo na sinagoga”.[17] E ainda, “os primeiros discípulos de Jesus Cristo eram judeus e a forma de culto que eles conheciam era o culto prestado na sinagoga e no Templo”.[18]
O que chama atenção é que não houve ordem expressa de Deus, para criação e configuração das sinagogas. Os crentes perceberam uma exigência de mudança no culto, a partir das circunstâncias históricas. Para eles, a mão invisível de Deus, na providência, foi suficiente para assumirem que o culto público devia ser oferecido com a mesma fidelidade ao princípio regulador, mas reconfigurado conforme a ordenação da “luz da natureza e […] prudência”.
Considerações finais
Se as ponderações acima forem sólidas — e eu acredito que sejam — há boas razões para afirmar que estão errados aqueles que sustentam que, por conta do exílio, restou a Judá sob Babilônia apenas lamentar pelos pecados cometidos, e ansiar pelo retorno do culto público, que se daria apenas com a reconstrução de Jerusalém e do Templo. Os que insistem nisso parecem não enxergar um desenvolvimento providencial da teologia do culto, no contexto da instituição-evento sinagoga, durante o período do exílio.
Desde cedo, a marca da linhagem santa é a adoração (Gn 2.15; 4.4,26; 8.20 et seq.). Desde cedo, Deus regulamenta a adoração (Êx 25.1—Lv 9.24). Desde sempre, Deus “procura” adoradores (Jo 4.23-24). É razoável a ideia de que, no cativeiro, Deus humilhou seu povo, privando-o de seu orgulho nacionalista e religioso, da liturgia, da pompa formal e dos sacrifícios no Templo de Jerusalém (cf. Jr 7.1-15). Mas não parece certo inferir que, ao afastar Israel da cidade e do Templo de Jerusalém, Deus privou absolutamente seu povo do culto público, durante sete décadas. Ora, o culto público é um “tributo”, algo que devemos a Deus, como criaturas dele e povo remido por ele (1Cr 16.28-29; Sl 29.2; 68.34; 96.7,8; 136.26). Não é estranha a ideia de, durante o exílio, Deus exigir do povo de Israel que o cultue, ao mesmo tempo em que o impede de fazê-lo? Se Israel estava sob disciplina durante o cativeiro, não parece mais consistente, inclusive com a revelação do NT e a experiência evangélica, entender a disciplina de Deus como experiência de limitação de acesso a alguns privilégios, mas não como privação de todo culto público?
Me parece mais bíblico e plausível afirmar que, durante o exílio, os crentes fizeram uso dos recursos que tinham e cultuaram publicamente a Deus, como podiam e de modo aceitável ao Senhor, nas sinagogas. O povo de Deus no exílio não foi apenas o povo da lamentação e sob juízo, mas também, o povo da adoração reconfigurada — individual, familiar e pública.
Notas
[1] Eu insisto nisso desde 2012, no curso Adoração bíblica, disponível na plataforma EaD da IPB Rio Preto (cf. ipbriopreto.org.br/cursos/).
[2] ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER. “Confissão de fé”, I.VI. In: BÍBLIA DE ESTUDO HERANÇA REFORMADA. São Paulo; Barueri: Cultura Cristã; Sociedade Bíblica do Brasil, 2018, p. 1994.
[3] FEE, Gordon D. 1Coríntios. São Paulo: Edições Vida Nova, 2019, p. 660 (Comentário exegético).
[4] KISTEMAKER, Simon. 1Coríntios. 2ª ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p. 469 (Comentário do Novo Testamento). Logos Software.
[5] KISTEMAKER, op. cit., p. loc. cit.
[6] BRIGHT, John. História de Israel. 8ª ed. rev. ampliada, a partir da 4ª ed. São Paulo: Paulus, 2003, p. 416 (Nova coleção bíblica).
[7] Parece ter havido uma tentativa tardia de reviver os sacrifícios no Templo Judeu de Elefantina, no alto Egito, mas isso não afetou o culto a Deus nas sinagogas; cf. WHITE JR., W. “Sinagoga”. In: TENNEY, Merrill C. (Org.). Enciclopédia da Bíblia Cultura Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2013, v. 5, p. 636.
[8] BRIGHT, op. cit., p. 417.
[9] Ibid., p. 416.
[10] Uso o termo “consolidação”, porque não há segurança absoluta quanto ao “surgimento” da sinagoga. White Jr., op. cit., loc. cit., fala de duas escolas. Uma delas, vincula a sinagoga ao próprio Moisés. Outra defende a “tese de que a sinagoga era de origem social e apareceu durante o exílio”. Suas raízes são encontradas nos grupos que se congregam para ouvir os levitas ou profetas, no período pré-exílico e nas reuniões em lares durante o exílio (Ez 8.1); cf. BRIGHT, apud TASSIN, Claude. O judaísmo do exílio ao tempo de Jesus. São Paulo: Paulinas, 1988, p. 48-49 (Série Cadernos Bíblicos — 46).
[11] WHITE JR., op. cit., p. 635.
[12] WAITE, J. C. J. “Adoração”. In: DOUGLAS, J. D. (Org.). O novo dicionário da Bíblia. Reimp. 1986. São Paulo: Edições Vida Nova, 1962, v. 1, p. 35-36.
[13] WHITE Jr., op. cit., p. 636.
[14] Ibid., p. 636,637.
[15] Ibid., p. 637. A formatação definitiva da sinagoga dos tempos de Jesus ocorreu no período interbíblico, entre Malaquias e Mateus.
[16] Ibid., p. 636.
[17] COSTA, Hermisten M. P. Princípios bíblicos de adoração cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 55.
[18] COSTA, op. cit., p. 56.
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