The Chosen é entretenimento e não evangelho

— por

Em outro post, eu compartilhei que gostei da primeira temporada da série The Chosen. Entre o fim de 2022 e meados de 2023, em diferentes conversas, eu até me contrapus a alguns “iconoclastas reformados de verdade”, para quem assistir a filmes sobre Jesus constitui quebra do Segundo Mandamento.

Agora escrevo para dizer o óbvio, reafirmando o que postei em 2006, sobre o filme O leão, a feiticeira e o guarda-roupa, defendendo que a arte é limitada na evangelização e doutrinação. Em outro lugar eu registrei que:

Hans Rookmaaker escreveu que a arte não deve ser usada como substituta da exposição cuidadosa e fervorosa da Palavra de Deus.

“A arte não deve ser usada para pregação, mesmo que isso seja útil. […] A arte com frequência tem-se tornado insincera e inferior em seu esforço de falar às pessoas e comunicar uma mensagem que não lhe compete. […] Na realidade, pedir ao artista que se torne um evangelista reflete a total confusão sobre o significado da arte e, consequentemente, de outras atividades humanas. […]

“[…] Para utilizar uma metáfora, a arte não deve ser comparada à pregação. Mesmo a melhor obra de arte ainda seria uma pregação ruim”.[1]

Voltando a The Chosen, entendamos que esta série constitui entretenimento e não evangelho. A verdade absoluta sobre o ministério terreno de Jesus, sua morte e ressurreição, encontra-se somente nas Escrituras. Simples assim.

Na Idade Média, a Igreja Católica pretendeu ensinar os Evangelhos fazendo uso de teatro. Desde o século passado, são produzidos filmes sobre Jesus. O resultado dessas iniciativas é entretenimento, não salvação, nem edificação da fé. Isso porque salvação e edificação da fé defluem do Espírito Santo aplicando as Escrituras ao coração do eleito de Deus.

Nosso cérebro processa entretenimento de um modo singular. No entretenimento, nós apenas desfrutamos de uma experiência ou conteúdo, sem preocupação com a verdade ou realidade. Um herói salta de um prédio de 30 andares e lança uma teia, que o conecta a outro prédio, e assim prossegue, e para nós está tudo bem. É entretenimento. Estamos nos divertindo e não “discernindo analiticamente” aquele conteúdo.

Aqui reside o perigo de qualquer produção cinematográfica sobre trechos da Bíblia. Quem assistiu Noé (Noah), épico produzido em 2014, protagonizado por Russel Crowe, sabe do que estou falando, pois, a obra guarda pouquíssima correspondência com o Texto Sagrado (Gn 6—10).[2].

Retornando aos filmes sobre Jesus, ainda hoje há crentes evangélicos que pensam que os magos estavam juntos da Família Sagrada e dos pastores, em torno do menino Jesus na manjedoura, simplesmente porque viram esta cena no filme Jesus de Nazaré, de Franco Zeffirelli (produzido em 1977). Outros pensam que Jesus pensou em se casar e formar família com Maria Madalena, depois de assistirem ao filme A última tentação de Cristo, de Martin Scorsese (produzido em 1988). Agora, graças a The Chosen, pessoas me perguntam sobre a esposa de Pedro e a crise conjugal deles, ou sobre o autismo ou Síndrome de Asperger de Mateus. Eu respondo que isso não está na Bíblia; foi inventado pelos roteiristas de The Chosen.

O fato é que eu gosto de entretenimento. Também me alegro quando vejo cristãos produzindo entretenimento. No entanto, a produção de entretenimento dito “cristão” parece sempre resvalar em dois problemas, primeiramente, a dificuldade de os crentes interagirem com a cultura circundante, ou seja, aprenderem a se entreter — sem renunciar à sua integridade e testemunho cristão — com o que não seja “gospel”. Trocando em miúdos, para alguns crentes, o que não é “gospel” é pecaminoso, daí a necessidade produzir versões “gospel” de entretenimento, para que o cristão possa “se divertir sem culpa”.

A outra dificuldade é, na verdade, uma impossibilidade, qual seja, a de transformar o conteúdo da Bíblia em entretenimento sem acrescentar coisas ao relato bíblico. Nós nunca conseguiremos isso, pois a Escritura não foi dada para a finalidade de nos entreter e sim, de nos salvar, consolar e santificar.

Por esta razão, eu confesso que, depois de elogiar The Chosen, eu desanimei de prosseguir assistindo. Como eu disse, a série tem seus méritos, mas eu não me sinto desconfortável em ver coisas improváveis em um filme sobre o Homem Aranha, mas sinto desconforto em ver coisas sendo acrescentadas ao texto simples dos Evangelhos. Eu prefiro o Mateus do Primeiro Evangelho; considero melhor ler o texto do Evangelho de Mateus do que assistir ao Mateus de The Chosen, caricato e acometido de Síndrome de Asperger.


Notas

[1] ROOKMAAKER, H. R. A arte não precisa de justificativa. Viçosa: Editora Ultimato, 2010, p. 37, 38, apud NASCIMENTO, Misael Batista de. Evangelização e discipulado. São Paulo: Cultura Cristã, 2022, p. 35.

[2] Cf. “Noé (filme)”. In: Wikipédia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Noé_(filme)>. Acesso em: 16 mar. 2024.

,

Newsletter

Atualizações em seu e-mail.


Deixe um comentário